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‘A pessoa é estuprada e ainda tem quem a julgue’, diz mulher abusada pelo padrasto por mais de dez anos

Saiu no site O GLOBO

 

Veja publicação original:  ‘A pessoa é estuprada e ainda tem quem a julgue’, diz mulher abusada pelo padrasto por mais de dez anos

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Em depoimento, vítima de violência sexual durante infância e adolescência lamenta que muitos ‘falam que (o abuso) é mentira’; ela alerta mães e pais: ‘Prestem atenção em suas filhas’

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Por Ana, em depoimento à Carla Nascimento

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RIO – Ana (nome fictício) ainda luta contra a culpa. Caso se distraia, o sentimento pode voltar. “Como a culpa é minha, se eu só tinha 6 anos?”, questiona ela, ainda hoje, tantos anos depois. Ela lembra que fez essa mesma pergunta ao padrasto, que não só a estuprou por dez anos, como também a convenceu de que  era a responsável por tudo aquilo. Já adulta, ela tomou coragem para encará-lo. Ele respondeu, sem remorso: “Você me seduziu”.

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Aos 10 anos, ela ousou, pela primeira vez, dizer que contaria tudo à mãe. Depois de quatro anos de abusos, a menina já entendia o quanto tudo aquilo era errado — e não suportava mais. Foi quando levou a primeira surra. “Sua mãe nunca vai acreditar em você”, disse o estuprador. A menina decidiu, naquele momento, silenciar sua dor.

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A ideia do abandono apavorava Ana. Sua mãe biológica já a tinha abandonado, como reagiria a adotiva ao saber do que acontecia enquanto ela estava fora, trabalhando? O padrasto conhecia a história e os medos da menina, e não hesitou em usá-los.

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A mãe adotiva de era enfermeira, com turnos de 24 e até 48 horas seguidas. Era nesse espaço de tempo que o estuprador, um militar licenciado, agia. A rotina de violência contra a criança começou com carinhos que, aos poucos, foram se tornando mais ousados, sem que a pequena Ana nem sequer compreendesse o significado daquilo. Usando tom de brincadeira, o estuprador pedia que ela não contassenada para a mãe adotiva:

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— Ele armava tudo de um jeito que parecia que eu queria aquilo. Durante muito tempo foi assim, e até hoje, às vezes, eu acho que a culpa foi minha — diz Ana, que continuou no ciclo de violência e silêncio. — Qualquer coisa era motivo para me bater ou castigar.

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A rotina de violência tornou a menina mais calada. Ela passou a se trancar no quarto. Quando a mãe perguntou se estava acontecendo alguma coisa, ela negou. Tinha medo.

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Ana lembra que a mãe, cujo trabalho sustentava a família, entregava o salário inteiro ao padrasto, que passava o dia em casa. Ele dizia cursar Direito, mas a família descobriu, mais tarde, que os estudos eram uma invenção. A suposta faculdade lhe dava argumentos para manter a mãe de Ana submissa.

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— Ele batia muito nela e dizia que ia tirar a nossa guarda. Era um desespero para todos — conta.

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Em meio ao caos familiar, a violência sexual continuou: “Quando você fizer13 anos, eu vou te penetrar”, avisou ele à Ana. Ela ainda se espanta com a falta de pudor do padrasto, com “essas coisas que ele falava”. Quando a menina fez 13 anos, ele cumpriu sua promessa. Os estupros seguidos a fizeram criar uma espécie de fuga para tirar o foco da dor que sentia:

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— Eu saía do meu corpo, me desligava, e era como se não estivesse ali até acabar. Mas a verdade é que eu estava lá — conta ela, que se lembra perfeitamente de tudo o que aconteceu, uma infância e adolescência tomadas pela violência física e sexual dentro de casa.

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Aos 14 anos,  ela passava horas olhando o horizonte na ponte que ficava no caminho entre a casa e a escola. Era lá que chorava, pensava na vida e refletia sobre como dar um fim ao sofrimento. O desejo de morrer piorou quando se viu grávida:

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— Ele controlava a minha menstruação e, um dia, disse: “Eu acho que você está grávida”. Para que a minha mãe não descobrisse, ele me mandou falar que eu tinha arrumado um carinha e engravidado.

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A mãe notou que a menstruação da menina estava atrasada e sugeriu levá-la ao médico. A adolescente recusou e passou a tomar todos os chás naturais que “faziam a menstruação descer”.

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— O sentimento que a gente tem por dentro é a pior coisa do mundo, a sensação de estar grávida do seu estuprador… A gente sabe que é uma criança, mas é um corpo estranho. Ninguém quer abortar, mas ninguém quer aquilo, ninguém quer esse corpo estranho. Hoje, de tudo o que aconteceu comigo, a única sensação boa, o alívio, é não ter tido o filho dele — afirma Ana.

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O banheiro ficou cheio de sangue, e Ana. lembra que continuou sangrando o mês inteiro, sem nenhuma assistência médica. À mãe, ela disse que era a menstruação. Mas a verdade é que ela não teve muito tempo para digerir todos esses acontecimentos. Deu descarga no feto e se voltou a outra preocupação “mais urgente”: a irmã.

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Ana conta que a irmã mais nova tinha entre 5 e 7 anos quando os olhares do padrasto começaram.

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— Ele dizia que ela ia ficar muito bonita, e falava “Antes de ela arrumar um namorado, eu mesmo prefiro comer”. Eu preferia que o estupro acontecesse comigo do que com ela. Se eu ficasse sabendo que minha irmã estava em casa sozinha com ele, eu ia correndo. Quando ele batia nela, eu voava nele, porque não queria que acontecesse nada com a minha irmã.

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A mãe adotiva defendia as crianças, e chegou a ameaçar o marido caso as tocasse. Mas ele tinha cartas na manga. Dizia que ligaria para a Bahia, mandaria fotos dela nua e contaria à família a “piranha” que ela era. Suas investidas, no entanto, iam além da difamação e chegavam à ameaça: “Eu sou um carrasco e estou aqui para executar você”.

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O padrasto não chegou a tocar a irmã mais nova de Ana e deixou de estuprá-la quando a adolescente tinha 17 anos. Segundo ela, o padrasto deixou de violentá-la quando passou a viajar o Brasil a trabalho e a se relacionar com outras mulheres. O golpe final foi quando Ana achou provas que obrigavam a mãe a lidar com a traição dele. Depois de mais de dez anos de abuso sexual, Ana tinha 20 anos quando conseguiu se afastar por completo do homem que lhe fez tanto mal.

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Em 2018, quando o padrasto e estuprador morreu, os serviços de saúde ligaram para a casa de Ana à procura de sua mãe. Ao ser avisado da morte, um dos filhos do padrasto e Ana. foi até a casa e levou os objetos de maior valor. Outro filho foi ao enterro obrigado pela mãe — ela própria uma vítima, forçada a se casar com o homem aos 13 anos, grávida. Separou-se ainda adolescente, quando seus pais decidiram intervir nas sessões de espancamento que sofria. Por fim, foi Ana. quem realizou o enterro, primeiro, por falta de quem o fizesse. Segundo, para dar um fim ao pesadelo. Era uma tentativa de enterrar, com ele, sua história de horror.

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A mãe adotiva de Ana morreu anos antes do padrasto. Ela não sabe se ela preferia fingir que nada acontecia ou se, de fato, desconhecia a violência sexuai sofrida pela menina.

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— As pessoas falam “como uma mãe não vê?”. Durante um tempo, senti muita raiva dela. Mas, hoje, eu sei o quanto ela sofria. Teve doenças de fundo nervoso, apanhou muito durante a vida. Não foi fácil para ela — reflete Ana.

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A repercussão e a ampla discussão de assuntos como pedofilia e estupro deixam Ana mais aliviada: muitos casos podem ser evitados, vítimas como ela podem ser poupadas. Por outro lado, os comentários maliciosos a incomodam.

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— A pessoa é estuprada, esculachada, e ainda tem quem a julgue, quem ache que é mentira, quem ache que a criança aceitou — lamenta Ana, referindo-se, especialmente, aos tribunais da internet.

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Ana afirma que a violência que viveu a deixou “emocionalmente abalada”. Ainda é difícil para ela buscar ajuda psicológica, a ideia de falar pessoalmente do assunto a aterroriza. Como efeito dos traumas que sofreu, seu corpo treme ao som de um tom de voz mais alto ou agressivo. Ana diz que não tem “condições de namorar” porque sente “asco”, “enjoo” e não quer ser tocada.

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Assombrada pelas lembranças, Ana leva o dia a dia o mais reclusa possível. Mas ela quer uma vida diferente da sua para outras crianças:

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— Prestem atenção em suas filhas. Crianças violentas, ou muito quietas, podem ser vítimas de alguém. A gente (que é vítima) fica sexualizada, perde a inocência, acontece uma erotização. Não deixe a sua filha ou seu filho sozinhos com adultos. Se você casou, cuidado: é um estranho! Não trate como se fosse normal alguém tocar sua filha. Converse e esteja de olhos abertos. Quantas meninas indo para a escola são abordadas por vizinhos?

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*O nome da vítima foi alterado para preservar sua identidade

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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