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A internet que odeia as mulheres. Elas são humilhadas e até ameaçadas

Saiu no site Marie Claire:

Você já ouviu falar em “doxing”, troller” ou “dick pic”? Esses são os termos que as vítimas de assédio aprenderam depois de serem humilhadas, perseguidas e até ameaçadas de morte nas redes sociais.

O significado de “doxing”,  “troller” ou “dick pic” também descreve o drama que cada uma das internautas ouvidas para esta matéria enfrentou. São histórias que mostram como o ódio que tomou conta da rede tem um alvo preferido: nós, o sexo feminino

Em janeiro do ano passado, a jornalista paulistana Ana Freitas, 28 anos, decidiu publicar um texto sobre o machismo que sofria na internet em um portal de notícias. O artigo era baseado em sua experiência como uma mulher que frequenta espaços de discussão sobre música, quadrinhos, jogos e filmes – cujos participantes eram na maioria homens. Imediatamente após a publicação, começou a ser atacada, primeiro no campo de comentários do Facebook, no post do texto, e em seguida em fóruns, com ameaças de violência, morte e estupro. “Diziam que seguiriam meus passos”, conta. Escreveram que iriam ‘calar a boca dessa vadia’ e “arrebentá-la”. Os trollers também fizeram montagens com suas fotos e “doxing”, como é chamada a divulgação de dados pessoais como endereço, telefone e nomes de familiares. Foram tantas as ofensas que, na hora de reunir tudo para levar à Delegacia da Mulher, onde fez uma denúncia, Ana precisou imprimir 600 páginas de puro ódio.

Na manhã seguinte à publicação do texto, a jornalista recebeu, em casa, entregas não solicitadas: vibradores, uma caixa de vermes, outra de esterco, livros com dicas para emagrecer e até uma coleira com seu nome. O grupo de assediadores passou a seguir seus passos por meio de serviços de localização e prometeu não parar de persegui-la até ela cometer suicídio. Os amigos de Ana se organizaram para monitorar as redes para protegê­‑la e a jornalista teve de se mudar para a casa de uma amiga. O assédio só diminuiu um mês depois, quando publicou textos sobre a agressão que vinha sofrendo em O Estado de S. Paulo e no Huffington Post, veículos para os quais trabalhava como free-lancer.

“Aqueles dias foram terríveis, tive crises de ansiedade com sintomas patológicos: falta de ar, pensamento desconexo, insônia. Uma experiência desse tipo atrapalha a vida inteira, você não consegue se concentrar em nenhuma outra atividade. Me desestruturou emocionalmente por completo”, lembra. Infelizmente, ela está longe de ser a única a passar por isso – entre 2000 e 2012, mais de 70% das pessoas que denunciaram assédio à organização americana de apoio a vítimas de violência digital Working to Halt Online Abuse eram mulheres. Segundo um estudo da empresa australiana de segurança digital Norton, publicado este ano, metade dos mil entrevistados sofreu com o mesmo problema, e a incidência entre garotas com menos de 30 anos era desproporcionalmente maior: 76% já havia vivido alguma situação similar, como trolling (humilhação online sistemática), ameaças de estupro e morte.

Para Luíse Bello, gerente de conteúdo da ONG feminista Think Olga, a primeira brasileira a tratar do assunto no mundo virtual, o fato de as mulheres serem alvo de ódio é uma questão histórica. “A internet, como a rua, é um ‘espaço público’ e as mulheres não são entendidas historicamente como ‘pertencentes’ a esse espaço. A elas sempre foi reservada a esfera doméstica. É uma manifestação fortíssima de machismo”, diz a publicitária.

Raiva direcionada
A perseguição não faz distinção: tanto anônimas quanto celebridades são alvos. Exemplo recente é o da atriz Camila Pitanga, após a trágica morte do ator Domingos Montagner, seu par romântico na novela Velho Chico, em setembro, depois de ser arrastado por uma correnteza no Rio São Francisco. Camila tentou salvá-lo, mas não conseguiu. Nas redes sociais, usuários disseram que ela deveria ter morrido no lugar dele, enquanto outros sugeriram teorias conspiratórias de assassinato citando o posicionamento favorável ao Partido dos Trabalhadores (PT) da atriz. O ódio ultrapassou a fronteira do digital e Camila foi vaiada ao chegar ao velório do ator.

Em 2012, a judoca Rafaela Silva, medalha de ouro nas Olimpíadas deste ano, enfrentou uma série de insultos racistas ao ser eliminada dos Jogos de Londres. Ela, que é negra, diz ter ficado perplexa com comentários como “volta para a jaula, macaca”. Outra vítima foi a nadadora Joanna Maranhão. Tida como uma atleta promissora, encerrou sua participação nos Jogos do Rio ainda nas eliminatórias e, além da frustração pessoal, teve que lidar com um ataque em massa de usuários em seu perfil de Facebook. “Fiquei chocada com o nível dos comentários: desejaram que fosse estuprada, disseram que meu marido estava fazendo uma péssima escolha ao casar comigo, que meu abusador [a nadadora foi abusada pelo técnico de natação do clube em que treinava, aos 9 anos, no fim das aulas, dentro da piscina] deveria ter me matado ainda na infância, e que eu tinha ligações financeiras com partidos de esquerda”, conta. “Mexeu muito comigo.” Joan­na entrou com uma ação judicial contra os agressores e disse que vai reverter o dinheiro da indenização para uma ONG que combate a pedofilia. “Quanto mais esses ataques acontecem, mais nítida para mim fica a necessidade de me posicionar. O silêncio perpetua a corrupção e o machismo”, disse.

Ataques como esses viraram rotina para Stephanie Ribeiro, 23 anos, estudante de arquitetura e ativista feminista negra. Stephanie tem milhares de seguidores em sua página no Facebook, na qual fala sobre racismo e sexismo. Seus posts recebem centenas de curtidas, mas muitas vezes são denunciados por usuários que discordam da opinião dela. Do final de 2015 para cá, seu perfil foi derrubado três vezes como resultado de uma campanha organizada para desestabilizá-la. A raiva é tanta que chegaram a criar uma página no Facebook com o objetivo de humilhá-­la, dizendo que ela tem “preconceito contra brancos” ou fazendo memes em tom sexista e racista. “Minha liberdade de expressão é muito cerceada. Me sinto extremamente sem voz por discutir questões importantes de gênero e raça em uma plataforma que se diz democrática mas, na verdade, não sabe lidar com as diferentes opiniões”, afirma a estudante de Campinas, sobre o Facebook. “Fico mal, me sinto injustiçada. Tenho medo de que essas pes­soas saiam do virtual e façam algo comigo, é uma linha contínua de violência”, completa Stephanie.

À Marie Claire, o Facebook disse estar comprometido em corrigir erros e agir com transparência nesse tipo de situação. Afirmou ainda que lida com milhões de denúncias por semana e que tenta promover um debate sobre discursos de ódio com a criação de uma central de segurança contra o bullying, e também organiza eventos voltados ao empoderamento feminino.

 (Foto: Arquivo Pessoal)

Fusão entre real e virtual
A psicóloga Julia Bugin, do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas, uma ONG que estuda o comportamento dos internautas, alerta para os efeitos nocivos das agressões: baixa autoestima, retraimento, insegurança, depressão e até risco de suicídio das vítimas. A advogada Gisele Truzzi, especialista em direito digital, afirma que 90% dos clientes que a procuraram nos últimos anos com queixas de assédio online são mulheres. “A maioria disse que preferiu uma advogada mulher porque tinha receio de um profissional homem”, afirma. “Nessas situa­ções, ela se sente exposta e geralmente começa a se culpar pela violência que sofreu. Diz que não deveria ter ‘dado motivo’. A primeira coisa que falo é: você NÃO é culpada, é vítima. O culpado é quem te expôs.”

Eu mesma posso atestar que esses efeitos psicológicos são reais. Em 2015, escrevi uma reportagem sobre perseguições online para a revista Galileu, da qual fui funcionária. Um dos entrevistados era conhecido como um “troll” (pessoa que persegue outras na rede). Ele não gostou do texto e por semanas recebi ameaças, xingamentos e uma enxurrada de tweets me ofendendo. No Facebook, meus posts foram compartilhados em tom de humilhação e meus amigos chegaram a ser contatados por inbox com mensagens falando mal de mim. Havia apenas uma pessoa por trás do ataque, mas a sensação era a de um exército inteiro contra. Desativei minhas contas no Twitter e no Facebook por um tempo e a Editora Globo, empresa que publica Galileu e Marie Claire, me defendeu na Justiça. Mesmo assim, foi dificílimo lidar com o ataque, senti sintomas de ansiedade crônica.

Casos de assédio podem e devem ser levados à Justiça. “Quando há difamação por gênero, orientação sexual, raça ou posição social, o crime pode ser considerado de ódio”, afirma Gisele, que recomenda às vítimas guardar mensagens, e-mails, comentários em listas de discussão e páginas das redes sociais. Depois de armazenar o material, o ideal é procurar um advogado especialista ou, caso a vítima não tenha condições de pagar um, buscar ajuda com a defensoria pública.

Isso não quer dizer, é claro, que não existam outras formas de reagir, como a de Mary Beard, uma professora de 59 anos de cultura clássica na Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Ela foi atacada nas redes ao afirmar que os imigrantes não são um peso para a economia britânica. Depois de receber uma série de e-mails sobre sua aparência, decidiu expor os agressores para os 47 mil seguidores no Twitter, dando-lhes a chance de pedir desculpas. Alguns o fizeram. Outros não, mas pararam de amolá-la. A jornalista australiana Alanah Pearce foi outra que também teve uma reação inusitada. Depois de sofrer bullying por escrever uma matéria sobre videogames, ela investigou a vida do algoz e chegou até a mãe dele, para quem enviou as ameaças que recebeu.

A revanche delas
No Brasil, a DJ, produtora de eventos e modelo de ensaios sensuais Giulia Henne, 27 anos, teve outra ideia para lidar com as ofensas: criou o tumblr “virjões do inbox” e publicou todos os xingamentos por lá, sem identificar os agressores. “Sofro bastante assédio online. Quanto mais você trabalha com o público, mais suscetível fica”, conta. Um dia, reclamou no Twitter sobre a “chuva de pênis” não solicitados que recebeu em sua caixa inbox. Muitos seguidores se impressionaram. Foi o que a levou a publicar as provas em um site. No tumblr, ela postou desde comentários como “sua gostosa” até descrições depreciativas e agressivas do que fariam com Giulia na cama e fotos não solicitadas de pênis, chamadas  de “dick pics”. “Me pergunto todos os dias o que leva os caras a fazerem esse tipo de comentário. Duvido que alguma mulher responda a um homem dizendo: ‘Nossa, que delícia, quero muito transar com você’”, diz. Depois do tumblr, conta que recebeu uma série de mensagens de homens pedindo desculpas pelo comportamento machista. “Sempre digo: ‘Que bom que você se sente mal pelo que fez, mas converse com seus amigos para que não façam o mesmo. Pedir desculpas não é suficiente’.”  E não pedir pode ser pior.

 (Foto: Arquivo Pessoal)

 

 

 

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