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Carol Duarte sobre sua personagem transexual: ‘O preconceito muitas vezes vem da ignorância’

Saiu no site Marie Claire:

A atriz fala de sua preparação para viver a trans Ivana, conta que não é muito vaidosa e revela que tenta fugir dos estereótipos

Carol Duarte é uma menina de sorte e tem uma grande responsabilidade. Em seu primeiro papel na TV, a atriz paulistana de 24 anos, vive uma personagem forte em horário nobre: A Ivana, de A Força do Querer. Estreante não é sua palavra. Ela está dando um show de interpretação e delicadeza ao falar da transexual que está se descobrindo. Feliz com a aceitação do público e destaque da personagem, ela conversou com Marie Claire e citou a grande feminista Simone de Beauvoir “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, confira!

Em sua estreia em novelas você já pegou uma personagem de grande responsabilidade social. Como recebeu a notícia? Como foi o convite?
Em abril de 2016 comecei a fazer os testes para a personagem. Fiz um teste em São Paulo com a produtora de elenco da novela Rosane Quintaes, e depois os outros foram todos no Rio de Janeiro com a Gloria Perez (autora) e o Rogério Gomes (diretor). Foram muitos testes, durou cerca de um mês o processo todo. Quando eu recebi a notícia que seria eu, fiquei muito feliz, sabia da responsabilidade do papel nesse momento no Brasil, sabia que a Ivana teria que ser muito bem construída. Na época eu estava em cartaz com a peça As Siamesas – Talvez eu Desmaie no Front, logo após o final da temporada me dediquei inteiramente a Ivana.

Ivana não gosta de se produzir e se veste com roupas do irmão em 'A Força do Querer' (Foto:  Globo/Artur Meninea)

Como você se preparou para viver essa personagem?

Fiz aulas de vôlei de praia com a Jackie porque a Ivana sonha em ser uma profissional de vôlei. E claro, conversei com muitas pessoas trans, mais homens do que mulheres. Decidi escutar várias experiências para ter essa pluralidade e então depois singularizar a Ivana a partir da condução da Gloria Perez. Foi muito importante, digo desde o que a pessoa me contava, fatos da vida, acontecimentos marcantes, até os silêncios que ela fazia. Uma experiência muitas vezes é contada nas entrelinhas, nem tudo conseguimos colocar em palavras. Me chamou a atenção como as pessoas relatavam suas experiências. As palavras que usamos para falar sobre alguma experiência são sempre resultado de um transbordamento de sentimentos e sensações, e até a Ivana nominar o que acontece com ela tem um longo caminho. Também vi muitos vídeos na internet de pessoas trans que estão fazendo a transição agora. Eu acompanho alguns canais há um tempo e eles falam sobre suas sensações, contam as modificações, os pormenores são muito ricos. Eu vi também alguns filmes que tratam do tema, entre eles “Meninos não choram”, “Tomboy”, tem uma série chamada “Transparent” muito interessante, além de alguns livros que olham para questão trans em diversas perspectivas.

Você pensou em desistir da profissão? Você foi garçonete para pagar o teatro. O que mais fez para bancar a vida de atriz?
Eu pensei em desistir, mas sempre foi uma ideia fracassada desde o início, eu nunca quis deixar de ser atriz. Foi um momento que repensei o que eu queria sendo atriz, foi muito importante para eu entender o que me move nesse ofício, que tipo de atriz eu queria ser. Não foi a Ivana que não me fez deixar de ser atriz. Eu encontrei algumas pistas do que me faz estar nessa profissão. As crises são boas para repensarmos os caminhos, os porquês. Estava em processo de criação de uma peça que eu e a atriz, escritora Carla Zanini escrevemos e para me sustentar financeiramente passei trabalhar com outras coisas e estava muito feliz fazendo o que me move, que é teatro. No final da história não fui trabalhar de garçonete pra desistir da profissão e sim pra viver com independência fazendo o que eu acredito.

Como era sua vida antes da fama? Consegue sair normalmente sem ser abordada?

Essencialmente minha vida não mudou, continuo fazendo as coisas que sempre fiz, trabalhando bastante, estudando, sonhando com milhares de projetos. Hoje em dia o que mudou é que as pessoas me reconhecem por conta da Ivana, vem conversar sobre a personagem, sobre a questão e angústias da personagem e a repercussão do meu trabalho tomou outra amplitude. Vejo as pessoas discutindo o tema da Ivana e isso me deixa extremamente feliz.

O que sua família está achando da personagem? Já havia conversado dentro de casa sobre o tema?

Minha família está muito orgulhosa por eu estar fazendo esse papel. Em casa conversamos sobre isso tudo e eles acham que a Ivana pode ajudar algumas pessoas que vivem esses conflitos todos muito sozinhas.

Conversou com outras trans? Já havia mergulhado nesse universo?

Eu conversei com várias pessoas trans pra fazer a Ivana, então foi um mergulho mais profundo nessa questão. Mas havia pessoas trans no meu convívio mesmo antes da novela.

Como acredita que conseguiu entender as mazelas de uma pessoa trans?

Enquanto atriz eu estudei bastante para compreender esse universo e o que as pessoas trans passam. Acho que esse mergulho é importante para que o ator compreenda as angústias, as pressões, a densidade do personagem. É esse o nosso trabalho: estudar, compreender tudo que envolve aquele sujeito e então concretizar isso tudo na cena, no corpo, na voz, na lógica. É sempre desafiador e tenho sempre a impressão de começar do zero toda a pesquisa. É uma folha em branco, que ao mesmo tempo que tem infinitas possibilidades, assusta pela imensidão. Estou vivendo tudo isso e como atriz a minha aproximação é a mais profunda possível.

Muito se foi questionado pelas pessoas trans que uma atriz trans deveria viver o papel, por representatividade. O que acha dessa discussão?
É uma discussão impossível de não levar em conta. Como atriz me preparei para levar essa discussão da maneira mais profunda possível. Eu sou uma atriz, estou estudando, fiquei muito feliz em poder levar esse tema para a casa das pessoas, porque me interessa falar sobre isso mesmo não vivendo na pele. Atores e atrizes trans farão a novela. Devemos discutir a participação de atores trans na produção cultural, atores trans estão aptos a fazer qualquer personagem, sem ser determinado pela sua identidade de gênero, é legítima e necessária a luta que busca espaço no cenário artístico, tanto quanto em qualquer outro setor da sociedade, e eu apoio essa luta.

O público já está começando a ter empatia com a Ivana, e, de alguma forma, começar a sentir que alguma coisa está diferente. Como está a repercussão das ruas?

As pessoas estão sendo muito carinhosas na rua e estão torcendo para que a Ivana seja feliz, que resolva suas angústias. Outras me abordam dizendo estarem muito felizes por esse tema estar sendo tratado numa novela das 21h.

Você transmite, para quem assiste, a emoção e ao mesmo tempo confusão de quem ainda não se descobriu. Onde achou esse tom?Foi em conversas com outras trans?

O primeiro apontamento vem do texto da Gloria Perez (autora). Se olharmos por cima os textos que a Ivana diz há muita reticência “…” e o tempo todo a Ivana está se esforçando para nomear suas angústias. Conversando, algumas pessoas trans relatavam essa angústia e contradição de não saber exatamente o que estaria acontecendo, mas ao mesmo tempo desconfiar de algumas respostas, tem uma certa solidão, uma intensidade forte de alguém em busca da vida, do sentido de estar no mundo, da descoberta de “quem eu sou no mundo”, o enfrentamento. Isso é comovente.

Qual foi a história mais emocionante que já ouviu desde que a novela começou? As pessoas se abrem, te pedem conselhos?

Algumas pessoas dividem experiências e falam dessa sensação de desajuste, desencaixe. Recebo mensagens de pessoas dizendo que assistem a novela com a família e essa discussão está sendo tratada dentro de casa, o que antes parecia difícil. A novela pode ser um gatilho de diálogo e busca de informação sobre o tema o que ajuda muito no combate a transfobia.

A novela atinge um grande número de pessoas. Como está sendo ficar de calcinha em algumas cenas, se amarrar, prender o peito, não se aceitar. São cenas fortes. Como encara?

São cenas que devem ter um cuidado um pouco maior, porque são chaves para a compreensão da incompatibilidade da Ivana com o próprio corpo. Eu não tenho nenhum receio em fazer todas aquelas ações e como atriz tenho que ir até o fim dessas cenas, porque é ai que aparece o conflito da Ivana.

Você está sendo muito elogiada pela verdade que está passando sobre os conflitos de uma trans. Esperava toda essa repercussão?

Eu acho que mergulhei tanto em estudar todo esse universo da Ivana, que minha ansiedade tinha mais a ver com a construção, de como ia ser a personagem do que qualquer outra coisa. Então essa repercussão que veio me deixou muito feliz e, claro, consciente de que há muita coisa por vir ainda, e estou muito animada para isso tudo.

Você acha que sua personagem está ajudando outras pessoas? O que você espera que sua personagem faça pela sociedade?

Eu espero que a Ivana possa ser uma possibilidade de diálogo, porque numa obra de ficção podemos suscitar temas que nos são urgentes, e esse é um. O Brasil é um dos países que mais mata trans, levar essa história para sala da casa das pessoas pode ser um gatilho para que as pessoas busquem compreender esse universo. O preconceito muitas vezes vem da ignorância. Nós como sociedade não podemos fechar os olhos para esses dados, já morreram mais de 100 pessoas LGBTs no Brasil, por serem LGTBs, isso é brutal, e esses dados dizem respeito a todos nós.

Você é vaidosa? Gosta do que vê no espelho?

Eu não me considero uma mulher muito vaidosa, sou mais tranquila nisso, mais natural. Mas também quando eu estou trabalhando não penso em parecer bonita, outras coisas me preocupam mais, fico mais solta para fazer as cenas, para me divertir. Eu gosto sim, às vezes me canso de me ver todo dia. É engraçado, mas falando sério, de maneira em geral gosto do que vejo. Um certo momento da minha vida eu vi que a beleza poderia ter infinitas formas.

Com a chegada da Ivana em sua vida, o que mudou?

Ando pensando muito sobre essa questão de gênero, dos estereótipos, do que “uma mulher faz”, e do que “um homem faz”. Isso está cada vez mais pulverizado. A grande questão para mim nesse trabalho é fugir dos estereótipos. Um homem por condição não é esse ser que é mais forte, mais bruto, menos emocional, o que senta de perna aberta, tem gestos mais retos, isso tudo é uma grande bobagem, isso tudo faz parte de uma construção social. Uma mulher não é definida porque gosta de rosa e usa vestidos. O nosso mundo é bastante binário nesse sentido e as pessoas trans podem carregar no seu corpo quase um manifesto contra essa prisão binária de gênero, que é uma construção social. Como diz Simone de Beauvoir “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.

(Foto: Globo/Mauricio Fidalgo)

 

Publicação Original: Carol Duarte sobre sua personagem transexual: ‘O preconceito muitas vezes vem da ignorância’

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