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Por que é preciso falar de gênero nas escolas

Saiu no site NEXO

 

Veja publicação original: Por que é preciso falar de gênero nas escolas

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Papel da mulher na sociedade é limitado por barreiras formais e informais. Evidências mostram que, com educação e discussão, é possível mudar valores e normas ineficientes e injustos

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Por Claudio Ferraz

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A onda conservadora que varreu o Brasil nas eleições continua gerando marolas. Uma das principais discussões se centra em reformas para proibir a discussão sobre gênero dentro das salas de aula, uma das bandeiras do presidente eleito Jair Bolsonaro e de seus seguidores. Contrário ao que pensam  movimentos como o Escola Sem Partido, esse tipo de discussão é mais importante do que nunca. O papel da mulher na sociedade mundial, e especialmente na brasileira, continua significativamente limitado por uma série de barreiras formais e informais. Além de uma participação menor na força de trabalho e de salários mais baixos, o Brasil tem uma das mais baixas representações femininas na política, em altos escalões de empresas privadas e do governo. Finalmente, se isso não fosse o bastante, a violência contra a mulher tanto em forma de violência doméstica como crimes sexuais cresce a cada ano.

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Mas o que a escola tem a ver com isso? Não deveriam ser os pais que educam seus filhos e passam seus valores? Infelizmente a transmissão cultural de valores de pais para filhos pode fazer com que normas sociais ineficientes e injustas sejam mantidas por décadas, e às vezes até séculos. Em diversos países da África, por exemplo, milhões de meninas passam pelo processo de cortes vaginais por motivos de tradição. O processo é extremamente violento e é feito na maioria das vezes sem o consentimento dessas meninas. Por que ele ocorre? Porque é uma tradição passada de mãe para filha, e, em comunidades onde a grande maioria das meninas passam por isso, nenhuma mãe quer que sua filha seja “mal vista”.

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Esse problema é um exemplo do que os economistas chamam de problema de coordenação. Nenhuma família quer ser a primeira a deixar de fazer isso, mas se todas as outras deixassem de fazer, elas também deixariam e todas as famílias estariam num equilíbrio mais eficiente. Intervenções que buscam mudar essas normas sociais mudando atitude dessas comunidades, como o experimento feito por Sonja Vogt e coautores no Sudão por meio  do uso de mídia, podem ser efetivas em modificar o equilíbrio existente.

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Claro que o exemplo da mutilação genital na África é extremo, mas podemos pensar que escolhas ocupacionais de mulheres sofrem de um problema parecido. Poucas mulheres decidem ser engenheiras ou matemáticas porque sabem que quando chegarem na turma, haverá poucas mulheres. Mas se mais mulheres resolvessem ser engenheiras, é provável que outras mulheres também escolhessem essa profissão. Diversas normas sociais como “matemática não é coisa de menina” se perpetuam e geram grande ineficiência para a sociedade.

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Muitos argumentam que as atitudes são consequência da baixa renda e escolaridade do país e que, conforme o Brasil se torne um país mais desenvolvido, as mulheres participarão mais da economia, terão mais igualdade e a violência contra elas diminuirá. Mas isso não é o que mostra a evidência empírica. Num trabalho influente intitulado “On the origins of gender roles“, a economista Paula Giuliano, da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles),  e seus coautores Alberto Alesina e Nathan Nunn mostram que sociedades que usaram o arado para a agricultura entre os séculos 17 e 19, onde os homens faziam grande parte das tarefas agrícolas pela necessidade de uso da força, são sociedades em que até hoje a mulher participa menos do mercado de trabalho.

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A persistência cultural de normas sociais foi analisada também pela economista da NYU (Universidade de Nova York) Raquel Fernández. Em seus trabalhos ela mostra que decisões de oferta de trabalho, fertilidade e casamento de mulheres filhas de imigrantes, que moram nos EUA, são altamente correlacionadas com essas mesmas variáveis no país de origem da mãe. Isso mostra que valores passam de mãe para filha de uma forma muito persistente fazendo com que equilíbrios culturais sejam difíceis de serem quebrados. Por outro lado, em trabalho conjunto com Alessandra Fogli e Claudia Olivetti, Raquel Fernández mostrou que esposas de homens que crescem em casas onde a mãe trabalha têm muito mais probabilidade de trabalharem. Isso indica que mudanças na percepção de homens são tão importantes, ou mais, do que mudanças nas crenças de mulheres.

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DISCUSSÕES SOBRE O PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE, DISCRIMINAÇÃO E VIOLÊNCIA SEXUAL DEVERIAM SER PARTE INTEGRAL DA EDUCAÇÃO DE MENINAS E MENINOS

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Dada a grande persistência cultural, a educação pode ajudar na mudança de hábitos e normas sociais que impedem a alocação ótima de recursos da sociedade. Discussões sobre o papel da mulher, violência e falta de espaço político podem ser importantes para chamar a atenção de jovens para o problema. Mas será que é efetivo?

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A professora da Universidade Northwestern Seema Jayanchandran e coautores Diva Dhar e Tarun Jain se propuseram a testar se é possível modificar as percepções de gênero de adolescentes usando um experimento no estado de Haryana, na Índia. Durante dois anos e meio, adolescentes de 150 escolas escolhidas de forma aleatória de um grupo de 314 escolas passaram por um programa de mudança de atitudes em relação a gênero. A avaliação consistiu em 27 sessões de 45 minutos de duração, o equivalente a uma sessão a cada três semanas com os alunos.

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O programa foi desenhado e implementado por uma organização de direitos humanos em parceria com o governo. Nas sessões interativas dentro da sala de aula, facilitadores, especialmente capacitados pela organização implementadora, discutiram tópicos relacionados com a identidade de gênero, valores, aspirações, estereótipos e discriminação.

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Por exemplo, numa sessão alunas e alunos foram separados em grupos que discutiram tarefas domésticas de homens e mulheres. Quando os grupos se juntaram para realizar uma discussão global, o padrão que surgiu é que as mulheres fazem quase tudo na casa. A turma então discutiu quem cozinha na casa e por que são sempre as mulheres, mas em restaurantes na maioria das vezes são os homens que cozinham, e como isso está relacionado com o prestígio de cada uma dessas atividades na sociedade.

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Aproximadamente 15 mil estudantes foram entrevistados antes e depois do programa sobre questões relacionadas a atitudes de gênero, aspirações em relação à educação e trabalho, afazeres domésticos, autonomia, e outros indicadores. Na pesquisa feita antes da implementação do programa, aproximadamente 80% de meninos e 60% de meninas acreditavam que o papel mais importante de uma mulher era ser uma boa dona de casa.

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A intervenção modificou de forma significativa a atitude de adolescentes (tanto meninas como meninos) em relação questões de gênero. Segundo os autores do estudo, mais adolescentes acreditam, depois do programa, que mulheres devem poder trabalhar e estudar em universidades mesmo se tiverem que sair de casa. O programa também melhorou de forma significativa atitudes comportamentais: meninos passaram a fazer mais tarefas domésticas. Os pesquisadores seguirão esse grupo por um longo tempo para ver se uma intervenção como essa altera decisões educacionais, de casamento e de mercado de trabalho e se as mudanças de percepção serão permanentes.

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Discussões sobre o papel da mulher na sociedade, discriminação e violência sexual deveriam ser parte integral da educação de meninas e meninos. Esse tipo de discussão não se dá em casa porque famílias reproduzem valores tradicionais com seus filhos. Ao confrontar a realidade e seus absurdos, e refletir sobre ela, muitos adolescentes passarão a questionar sua ações e as de seus pares e isso, mais do que perigoso, será extremamente saudável para o futuro do Brasil.

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Claudio Ferraz é professor da Cátedra Itaú-Unibanco do Departamento de Economia da PUC-Rio e diretor científico do JPAL (Poverty Action Lab) para a América Latina. É formado em economia pela Universidade da Costa Rica, tem mestrado pela Universidade de Boston, doutorado pela Universidade da Califórnia em Berkeley e foi professor visitante na Universidade Stanford e no MIT. Sua pesquisa inclui estudos sobre as causas e consequências da corrupção e a avaliação de impacto de políticas públicas.
Ele escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

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