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O que eu, você e Damares Alves temos em comum?

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE

 

Veja publicação original:  O que eu, você e Damares Alves temos em comum?

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A colunista Bárbara Thomaz traz uma reflexão das recentes declarações da ministra: “Deus e Estupro na mesma sentença feminina. Companheiros constantes nos rumos de nossas vidas e provenientes do mesmo autor: o Homem”

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Por Bárbara Thomaz

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Damares Alves, nomeada Ministra de Direitos de Humanos pelo governo Bolsonaro, trouxe à tona sua história de superação de abusos sexuais sistemáticos sofridos dos 6 aos 8 anos, cometidos por um tio. Emocionada, ela faz o relato do encontro que teve aos 10 anos de idade com Jesus, no pé de goiaba, quando estava prestes a cometer suicídio se utilizando de veneno. Tudo isso, em meio à declarações de que havia chegado a hora de a igreja governar – aliás quando foi que ela deixou de governar? – e de planos do que foi batizado popularmente como “bolsa estupro”. Em paralelo, um imenso tumulto causado pelas denúncia contra  João de Deus, que já soma 330 denúnciasenvolvendo diversas formas de violência sexual, incluindo pedofilia.

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Deus e Estupro na mesma sentença feminina. Companheiros constantes nos rumos de nossas vidas e provenientes do mesmo autor: o Homem. Autointitulado plantonista divino na Terra. Homem que criou um Deus à sua imagem e semelhança, ocultou e usurpou a história, a voz e o poder da mulher.

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Damares e eu temos muitas afinidades: transformamos nossas dores numa missão e somos devotas à vontade de que isso nunca mais aconteça com alguém nesse planeta.

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“Essa é uma nação que abusa de mulheres. Venho para esse ministério como uma menina sobrevivente, querendo que nenhuma outra precise do pé de goiaba”

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O estupro, devo dizer, é ainda mais antigo do que a invenção de Deus. Desde a pré-história, em todos os tempos da humanidade eaté nos mitos ele esteve presente. Nas guerras, por exemplo, estuprar mulheres fazia parte da tática para desmoralizar homens adversários.

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Essa é a questão primordial e escapa do conhecimento de muitos. O estupro não é movido por um desejo sexual e sim por uma relação de poder no jogo político-social. Um sádico exercício de subjugar outro ser humano. Estupro é reafirmação dessa hierarquia e não sobre sexo.

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Estupra quem pode. Homens não apenas se sentem autorizados como muitas vezes enxergam essas violações como bênçãos e elogios. Depois se protegem nas leis que eles mesmos criam, eles mesmos julgam. Nenhuma surpresa que apenas 3,3% dos estupros sejam cometidos por mulheres, enquanto estas respondem por 89% das vítimas. Crianças e adolescentes somam 70% desse contingente. Apenas 1% dos estupradores sofrem punições. Aos 5 anos de idade entrei para a estatística dos 90% de casos não relatados e dos 70% que acontecem em ambientes domésticos.

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Devo dizer que começar a jornada da existência com uma recepção dessas, uma violação tão brutal da sua alma, faz com que você carregue marcas eternas, profundas e se veja à beira da loucura ou da morte. Damares, encontrou sua salvação no pé de goiaba.

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Assim como ela, precisei achar uma saída para aquele sofrimento e no meu caso a solução era virar menino. Em minha jovem concepção, ser um homem me colocaria em outro patamar, me tiraria de uma situação de vulnerabilidade e opressão. Eu precisava sentir aquela liberdade.

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Pedi à meus pais que me chamassem de Bruno. Vestia-me como um garoto, brincava como um garoto, roubava cuecas dos meus primos, tirava fotos com a mão dentro da calça fazendo a saliência do órgão masculino, tentava me adaptar em vão ao xixi em pé e até cortei o cabelo. Nada funcionou e a experiência durou pouco.

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Damares, assim como eu,  andava por questionar as razões divinas. Como poderia Deus ter permitido? Estava louca para ter essa conversa, ansiava encontrá-lo e usei de todos os canais que se abriram. Boa vontade da família não faltou em me dar um Deus que fosse. Preciso eximá-los dessa culpa afinal meus pais e avós se empenharam na tarefa de me apresentar suas religiões distintas. Marquei presença não apenas aos sermões espíritas, católicos e evangélicos como em todas as respectivas escolinhas religiosas.

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Uma das tentativas desesperadas de contato com o departamento superior foi através de uma importante figura feminina. Ajoelhada frente ao altar que minha avó católica mantinha em seu quarto, havia uma enorme imagem de Nossa Senhora coberta em seu manto, rodeada de velas e com todas as 3×4 da família. Ao lado de minha foto estava também a de meus abusadores. Rasguei-as em segredo e poucas horas depois fui apontada como autora do crime.

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Em minha defesa usei a Virgem Maria como mensageira dessa dor, dizendo que deveria ser um sinal de que a Santa estaria decepcionada com aquelas pessoas. Me faltou coragem para gritar a dor. Jamais acreditariam em mim. Engoli a bronca e fui informada: quem tivesse rasgado as fotos certamente iria para o inferno. Não lembro de ter brigado com Deus afinal só restou a sensação de que, se ele de fato existisse, não me via.

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Boa vontade da família não faltou em me dar um Deus que fosse. Preciso eximi-los dessa culpa afinal meus pais e avós se empenharam na tarefa de me apresentar suas distintas religiões. Marquei presença não apenas aos sermões espíritas, católicos e evangélicos como em todas as respectivas escolas religiosas.

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As discordâncias de ideologias, as farpas trocadas, a ausência de respostas e as inconsistências geraram mais dúvidas. Fui convidada a me retirar de todas elas, não sei se pela quantidade de perguntas ou pela inconveniência delas. Em suma, nada colou. Porém a experiência com a Bíblia me chocou e me afastou desse Deus mais do que os próprios abusos.

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Nela conheci um Deus violento, punitivo e sanguinário. Pior, parecia haver alguma ligação entre as palavras daquele livro, quem o escreveu, o Deus que nele habitava e o tratamento da mulher como um cidadão de segunda classe. É aqui que eu e Damares nos separamos. Como poderia aceitar uma figura que à homens servia e mulheres punia?

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“Deus é poder” – diziam.
“Poder para quem?” – respondia mentalmente.

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Segui bisbilhotando o mundo à procura de um Deus para chamar de meu. Ainda que o sentisse, escolher uma religião parecia (e ainda parece) uma questão de gosto, conveniência ou geolocalização.

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Precisava de um Deus que realmente me amasse o suficiente a ponto de não me inferiorizar perante ao homem. Um Deus que lhes contassem que é do meu útero que nascem e que isto é uma grande honra. Um Deus que jamais desejasse meu apedrejando. Um Deus que não me tratasse como propriedade privada do homem. Um Deus que não me trancasse em cárcere doméstico, que não me reduzisse a uma geradora de herdeiros e que permitisse o meu prazer pois ele é também sagrado. Um Deus que me desse vez, me desse voz. Deus, homem, estupro, propriedade privada, guerra e poder andam por demais misturados.

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Damaris afirma que o único lugar seguro para uma criança é dentro do templo, ao lado de seu sacerdote.

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João de Deus e Dalva Teixeira (Foto: Reprodução)

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Chegamos então em João de Deus. Outro Deus autointitulado portando sua tripla armadura: homem, branco e messias. Absolutamente inquestionável. Décadas de crimes sexuais silenciados e impunes. A própria filha engrossa o coro das vítimas, que assim como ela foram ameaçadas e desacreditadas. A voz de 330 mulheres ainda não tiveram peso suficiente perante a desse homem que voltou a trabalhar, não como num dia qualquer, mas ovacionado por seus seguidoresUma das vítimas se matou neste mesmo dia pois não suportou.

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Deveria chocar um total de zero pessoas que um homem, ainda mais um de Deus, abusasse do poder que detém nas mãos. Raríssimas pessoas estão habilitadas a carregar tamanha responsabilidade sem sucumbir a lei do homem. Há uma quantidade estarrecedora de casos envolvendo estupros, abusos, pedofilia e os mensageiros de Deus. Muito provavelmente porque este é o lugar mais seguro e intocável para um monstro se proteger. A religião, assim como o homem tem o talento de se auto-eximir das violências que gera. Não estou dizendo que a bíblia ou Deus é a favor do estupro, de forma alguma. No entanto algumas mensagens e interpretações acabam por gerar e perpetuar um cenário fértil para que ele aconteça.

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Damares e eu temos um ponto de contato fortíssimo, um laço inquebrantável: somos mulheres, acreditamos no amor, na necessidade de proteger nossa crianças, sobrevivemos com o fantasma dos abusos e queremos mudar radicalmente essa realidade.

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O que nos divide é a interpretação de um Deus que delimita um papel obrigatório para homens e mulheres. Essa é a tal da ideologia de gênero. Estudo de gênero é outra coisa. Estudo de gênero visa horizontalizar as relações, dando oportunidades de escolhas iguais, diminuindo as distâncias do que um dia nos separou, semeando a tolerância e celebrando a diversidade. Estudo de gênero quer acabar com as violências que a ideologia de gêneros ensina e fomenta, e para isso precisamos mudar a concepção de que o gênero feminino é secundário e oposto ao masculino.

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É aí que Damares se enrosca entre o que pretende e o que diz:

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“Estou há anos na estrada no combate à ideologia de gênero, pois a erotização de crianças é um dos pilares desta terrível ideologia”

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Pois é. Ela está lutando contra a mesma coisa que as feministas. A erotização precoce é uma das frentes principais no combate à cultura de estupro.

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Mas para Damares e uma imensa parcela da população, a erotizacão precoce reside na mamadeira de piroca e na fantasia de que alguém está por aí dando pintos de borrachas para meninas de 8 anos aprenderem a colocar camisinha. Ninguém em pleno juízo mental acha adequado uma situação dessas. Nós, assim como você, acreditamos que a informação é essencial e que via de regra deve ser adequada a cada faixa etária. O Estado, tem o dever de prevenir as violências.

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Em sua tentativa de dar mais dignidade àquelas que seguirem com a gestação fruto de um estupro, Damaris sugere que o agressor – quando identificado – deva pagar pensão à mãe. Gostaria de saber como isso seria possível já que, sendo um criminoso, estaria na cadeia. Aguardo ansiosamente pela parte em que o Estado cuidará da saúde mental dessas vítimas e investirá na ressocialização dos agressores que precisam e muito de uma reciclagem antes de voltarem a viver em sociedade.

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– “A mulher nasceu para ser mãe. Esse é o papel mais especial da mulher. A mulher está muito fora de casa, trabalhando. É como se houvesse hoje, no Brasil, uma guerra epantre homens e mulheres. Não existe isso. Acho que dá pra gente viver muito bem nessa sociedade que separou homens e mulheres. Como estar no mercado de trabalho sem comprometer nossas funções (femininas)? É possível.

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Há muito tempo que a instituição familiar precisa de quatro (ou mais) braços monetizados para se sustentar. Nos dias atuais, são poucas as mulheres que podem deixar de ter uma renda por simples escolha. Há mulheres que renunciaram à quase tudo que um dia foram e sonharam em prol da família, dos filhos mas vivem deprimidas e solitárias. Há mulheres sem estudos porque foram mães jovens demais (por falta de educação sexual apropriada ou por terem acreditado que essa seria sua emancipação), crianças sem creches, sem nome do pai na certidão, mães que não recebem pensão ou ajuda do governo, que não conseguem dar a educação e a saúde que desejam para seus filhos. Existem as mulheres que com independência financeira se veriam livres de relacionamentos abusivos e violentos.

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Damares, uma mulher de grande atuação e trabalho pesado, acumula uma série de projetos sociais importantes, tem vida pública e reconhecimento. Desejar que mulheres voltem aos lares e ao anonimato soa tão paradoxal quanto injusto. Ela é o exemplo de uma mulher que pode alcançar o poder, que apesar das violências resiste, se refaz e chega onde quiser a fim de transformar o mundo. Umas encontram Jesus na goiabeira, outras encontram o feminismo mas todas estamos aqui lutando pela nossa sobrevivência. Resta saber se é de todas  ou de apenas algumas.

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Sinto muitíssimo que isso tenha acontecido conosco Damares. Entre tantas afinidades começo a sonhar com a nossa união, com a troca de saberes e nas montanhas que o apoio mútuo pode mover. Hoje sonhei alto, como nossas ancestrais o fizeram por muitos séculos e assim nos permitiram ter essa voz.

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Quem sabe juntas possamos encontrar respostas diferentes? Quem sabe seremos as descobridoras de uma Deusa que está, ombro a ombro, ao lado de Deus. Uma Deusa sufocada e que pede vida. Vai ver a falta que sentimos é dela. Vai ver somos Deusas. Sonhei que talvez a gente possa reinterpretar a bíblia como estamos reescrevendo a história e os caminhos tortos que alguns homens construíram.

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Posso não ter achado um Deus mas nunca perdi a minha fé.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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