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Guarda compartilhada: o filho não é de um nem de outro, é de ambos

Saiu no site CONJUR:

 

Veja publicação original: Guarda compartilhada: o filho não é de um nem de outro, é de ambos

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Por Rodrigo da Cunha Pereira

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Guarda de filho é uma expressão que tende a acabar. É que ela traz consigo um significante que está mais para objeto do que para sujeito. Mais para posse e propriedade do que cuidado com os filhos. Assim como a expressão “visitas” foi substituída por “convivência” pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069/90), o Estatuto das Famílias (PLs 470/13), elaborado pelo IBDFam (Instituto Brasileiro de Direito de Família), após sua aprovação, substituirá todo o livro de família do Código Civil brasileiro, já não usa a expressão guarda, mas apenas convivência.

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Às vezes, é difícil absorver essas novas expressões. Por exemplo, o CPC/2015, apesar de muitos avanços, continuou usando, inadequadamente, a expressão visita. Embora seja um simples vocábulo, ele traz consigo a força e o poder do significante, que é preciso mudar, tirar esse sentido de frieza que a palavra traduz. As palavras têm força e poder e veiculam, além de um significado, também um significante, que é a representação psíquica do som, tal como nossos sentidos o percebem (Cf. meu Dicionário de Direito de Família e Sucessões – Ilustrado – Ed. Saraiva – verbete significante).

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Enquanto a expressão guarda ainda vigora, precisamos fazer alguns ajustes em sua concepção, que ainda traz consigo o ranço do patriarcalismo e a tradução de uma antiga, e hoje inadequada, forma de criar filhos de pais separados. Já melhoramos. Após uma luta histórica dos pais que tinham o seu convívio barrado pelas ex-mulheres, foi aprovada a Lei 11.698/08, introduzindo a guarda compartilhada no Brasil. Mas só quando fosse possível. E nunca era possível, tinha-se sempre uma desculpa e uma interpretação de que não era bom para os filhos. Foi necessário que viesse a Lei 13.058/2014, estabelecendo a obrigatoriedade do compartilhamento da guarda. Houve resistências, e o principal argumento é o de que isso só seria possível se os pais estivessem de acordo. A lei é exatamente para pais que não se entendem, pois quando eles se entendem não há necessidade de lei, ou seja, eles resolvem independentemente da lei.

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Grande parte das sentenças judiciais, apesar da lei, ainda é pela guarda unilateral. Exatamente por isso o Conselho Nacional de Justiça expediu a Recomendação 25/2016 dizendo o óbvio: juízes, cumpram a lei da guarda compartilhada.

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A joint custody surgiu na Inglaterra no início dos anos 1970. Em 1976, foi adotada pelo ordenamento jurídico francês, depois nos EUA e Canadá, e assim foi se espalhando pelo mundo, até chegar ao Brasil. Uma das formas de se quebrar a resistência, e aceitarem a obrigatoriedade do compartilhamento da guarda, foi estabelecer a residência fixa na casa de um dos pais, o que significa na casa da mãe na quase totalidade dos casos.

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Ainda estamos vivenciando um processo histórico e implementação da cultura da guarda compartilhada, e sua evolução depende da quebra de paradigmas da estrutura patriarcal. Ou seja, da forma como concebida, é um modelo velho, antiquado e não atende aos interesses das crianças, mas dos adultos. Por exemplo, em todas as negociações sobre o convívio dos filhos de pais separados, a mãe sempre diz: eu “deixo”, eu “permito” que você veja o filho… É o mesmo discurso machista do homem quando diz que “ajuda” nas tarefas do lar, subtendendo que esse é um trabalho da mulher, e não uma participação em condições de igualdade. A premissa está errada. O homem deve é compartilhar as tarefas domésticas, pois não se trata de ajuda. Assim como a mãe não tem que “deixar” o pai ver o filho, pois os direitos são iguais.

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É esse discurso patriarcal que precisa mudar para que o cotidiano da criação e educação dos filhos seja realmente compartilhado. Os filhos não podem ser vistos como propriedade de um ou de outro pai. Daí a proposição do IBDFam da extinção da palavra guarda, retirando assim o significante de posse e propriedade de filhos. Enquanto essa mudança se opera, a guarda compartilhada cumpre a importante função de quebrar essa estrutura de poder: o filho não é de um nem de outro. É de ambos.

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O próximo passo evolutivo em direção à proteção das crianças e adolescentes é entender que, na maioria dos casos, os filhos podem ter duas casas. Crianças são adaptáveis e maleáveis e se ajustam a novos horários, desde que não sejam disputadas continuamente e privada de seus pais. O discurso de que as crianças/adolescentes ficam sem referência, se tiverem duas casas, precisa ser revisto, assim como as mães deveriam deixar de se expressarem que “deixam” o pai ver e conviver com o filho. Ao contrário do discurso psicologizante estabelecido no meio jurídico, e que reforça a supremacia materna, o fato de a criança ter dois lares pode ajudá-la a entender que a separação dos pais não tem nada a ver com ela. As crianças são perfeitamente adaptáveis a essa situação, a uma nova rotina de duas casas, e sabem perceber as diferenças de comportamento de cada um dos pais, e isso afasta o medo de exclusão que poderia sentir por um deles. Se se pensar, verdadeiramente, em uma boa criação e educação, os pais compartilharão o cotidiano dos filhos e os farão perceber e sentir que dois lares são melhor do que um.

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As dificuldades e resistências com essa modalidade de guarda advém, geralmente, de uma relação mal resolvida entre o ex-casal e do medo de “perder” o filho para o outro pai/mãe. Muitas mulheres têm medo de que o compartilhamento interfira na pensão alimentícia, o que não é verdade. Ou seja, guarda de filhos é uma questão, também, de poder.

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Assim, como o patriarcalismo se estruturou na suposta superioridade masculina para engendrar as estruturas de poder, a guarda de filhos está calcada na suposta superioridade da mulher para criar filhos, advinda do mito do amor materno. O movimento feminista já quebrou a suposta superioridade masculina, a mulher teve acesso ao mercado de trabalho (embora ainda com certas desvantagens), e já se sabe que homens e mulheres têm a mesma capacidade para criar e educar filhos.

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A historiadora francesa Elizabeth Badinter, em seu conhecido livro O mito do amor materno, demonstrou que não existe esse amor materno natural. Ele é da ordem da cultura, e, sendo assim, homens e mulheres têm a mesma capacidade para criar e educar filhos. É essa cultura que está mudando e que nos remete a uma nova concepção sobre educação de filhos, e que o ordenamento jurídico precisa alcançar. Entender isso significa tirar os filhos de lugar de objeto, de moeda de troca do fim da conjugalidade, e transformá-los em sujeito de direitos. Somente assim o princípio constitucional do melhor interesse da criança estará sendo levado a sério e instalando uma nova cultura parental em benefício dos filhos.

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Guarda compartilhada deveria ser tratada até mesmo como questão de saúde pública, pois o que está em jogo nesta quebra de braço é a saúde mental e formação psíquica dos filhos. Quando atingirmos um melhor grau de evolução, constataremos, ao contrário do que muitas mulheres ainda acham e têm medo da guarda compartilhada, é que ela interessa principalmente às mulheres. Afinal, elas terão mais tempo livre para desenvolver outras atividades além da maternidade. E os filhos crescerão mais saudáveis, pois poderão descolar um pouco da mãe, que, de tão boa que sempre é, pode ser até perigosa.

 

 

 

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