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“O programa a seguir pode conter descrições de extrema violência e não é recomendado para pessoas sensíveis.” A frase, dita por uma voz feminina, inicia os episódios de um dos podcasts mais populares do Brasil e o mais ouvido, no Spotify, dentro da categoria “true crime” (expressão usada para classificar produções midiáticas sobre crimes reais), em que a presença de mulheres é uma constante. Apresentado por Carol Moreira e Mabê, “Modus operandi” soma mais de 8 milhões de “plays” na plataforma e se debruça sobre histórias de assassinatos e serial killers com narrativa envolvente e trilha instrumental soturna, mas não só: traz comentários contundentes sobre feminicídio, machismo e questões identitárias, num esforço para produzir algo que passe ao largo da pecha do sensacionalismo. “Sempre me incomodei com abordagens que cultuavam o assassino, como foi feito no caso de Charles Manson, ou até mesmo em relação a Suzane von Richthofen, por ela ser considerada bonita”, afirma Mabê.
Os dois crimes citados por ela estão entre os mais de 80 capítulos produzidos desde dezembro de 2019. Ao contar a história do líder da seita que aterrorizou os EUA em 1969 com uma série de assassinatos, as apresentadoras esmiúçam, em detalhes, como ele se aproveitava da vulnerabilidade das mulheres. Já na narrativa dedicada à jovem paulistana que planejou a morte dos pais com o namorado, chamam atenção para a exploração repetitiva de alguns aspectos pela mídia. Também destacam uma questionável entrevista concedida por Suzane a Gugu Liberato, apresentador morto em 2019.
Somam-se a estes episódios outros como “Existem serial killers mulheres?”, “Como é ser jurado no Brasil” e o “O que é um psicopata?”, parte deles narrada com a ajuda de especialistas, que adicionam ainda mais profundidade ao conteúdo. “Acho que as mulheres costumam ter mais ‘carinho’ ao observar as situações”, afirma Carol. “Quando vamos falar de um estupro, sabemos como as vítimas são tratadas durante a investigação. Temos uma predisposição a entendê-las sem julgá-las.”
Audiência feminina
Mabê afirma que ela e Carol não são as únicas a ter esse tipo de cuidado. Segundo a apresentadora, boa parte das novas produções dedicadas ao universo criminal rompem com narrativas como aquelas que validavam argumentos do tipo “ela usava uma roupa curta demais” para culpabilizar as vítimas. “Muita gente nem aceita esse tipo de sensacionalismo”, diz, lembrando que 75% da audiência do “Modus Operandi” é formada por mulheres.
A apresentadora cita ainda que a ideia do podcast surgiu da maneira como ela e a amiga foram fisgadas pelo sucesso de “Making a murderer” (2015). A série documental produzida pela Netflix conta a história de Steven Avery, que passou 18 anos na prisão por um estupro e, em 2017, foi condenado em outro caso, por assassinato. A produção também tem autoria de duas mulheres, Laura Ricciardi e Moira Demos, e é considerada um marco no gênero. “Quando surgiram esses documentários que falam, com responsabilidade, sobre os crimes e mantêm o respeito às vítimas, passei a me interessar ainda mais”, afirma Mabê.
Por mais que as mulheres se esforcem para ressignificar essas narrativas, a jornalista Luiza Lusvarghi, autora do livro “O Crime como gênero na ficção audiovisual da América Latina”, pondera que isso ainda não é uma regra. “Infelizmente, o sensacionalismo sempre acompanha esse tipo de produção, tanto no jornalismo quanto na ficção. Existe a ideia de explorar sentimentos alheios, o medo e o horror”, diz, comentando também o impacto das causas identitárias, como o feminismo, na cena. “Nas nossas histórias criminais, a presença da mulher na delegacia é recente. E muitas vezes ainda aparece bastante masculinizada. Ela é a vítima, e poucas vezes a investigadora, a advogada.”
A lista de podcasts de crimes reais mais ouvidos no Brasil no Spotify é seguida por “Quinta misteriosa”, em que novamente uma voz feminina conduz os ouvintes. Dessa vez, quem faz as honras é a influenciadora Jaqueline Guerreiro, que sempre abre os episódios com um “Oi, bonitas e bonitos. Tudo bem com vocês?”. A criação é um desdobramento de seu programa homônimo no YouTube, onde reúne quase três milhões de seguidores, e tem como característica a maneira acelerada e dinâmica com as histórias são narradas.
Os capítulos, que já foram reproduzidos 1,7 milhões de vezes, em geral, não passam de meia hora de duração e são contados apenas por Jaqueline, com base em pesquisas feitas em livros e na internet. “O caso BTK foi um dos mais trabalhosos. Li o livro inteiro e transformei em roteiro. Levei semanas para terminar”, diz, citando a maneira como o serial killer americano Dennis Lynn Rader ficou mais conhecido, após matar 10 pessoas, entre 1974 e 1991.
Preconceito
Assim como as apresentadoras do “Modus Operandi”, ela acredita que as mulheres trazem uma abordagem diferente, quando se trata de crimes. “Eu, por exemplo, prefiro ouvi-las falando sobre o assunto do que homens”, diz, ao emitir uma opinião que não necessariamente era compartilhada pelos seus seguidores, quando ingressou nesta seara. “Tinha mais preconceito. Recebia muitos comentários dizendo que eu, como mulher, não deveria estar contando essas histórias porque não combinava, e um homem faria melhor. Hoje, não sinto tanto isso. Mas, honestamente, nunca me incomodei.”
A lista de mais ouvidos neste segmento também já teve o topo ocupado por “Praia dos Ossos”, lançado no ano passado e apresentado por Branca Vianna, com pesquisa e coordenação de produção de Flora Thomson-DeVeaux. Embora não seja descrito como “true crime” por suas idealizadoras que sequer consomem o gênero, o programa conquistou apreciadores com o conteúdo que parte do assassinato de Ângela Diniz pelo então namorado Doca Street. O caso, registrado em Búzios, em 1976, serviu como fio condutor para narrar a história do feminicídio no Brasil, já que Doca foi de réu confesso a vítima, numa trama que escancara o machismo no país.
“Quando começamos a concebê-lo, essas histórias de mulheres assassinadas já tinham meio que virado uma fábrica de conteúdo. Perde-se a conta de quantas séries e programas foram feitos. Mas a nossa ideia era fazer justamente o contrário, até porque o caso não tinha nenhum mistério”, afirma Flora, sobre a decisão de não explorar aspectos como informações periciais.
Na opinião dela, não basta uma maior presença feminina por trás dessas produções se não há uma mudança na estrutura narrativa, de fato. “Muitas vezes, as criações reforçam todo o cerco existente em torno das mulheres”, lamenta. Nesse sentido, ela brinca que “Praia dos ossos” é como um cavalo de troia. “Muitas pessoas foram atraídas pela ideia de saber mais sobre um crime que envolvia o assassinato de uma socialite, na década de 1970. Mas, quando viam, estavam ouvindo sobre o patriarcado.”
Para os órfãos do programa que acumula 1,8 milhão de downloads, Flora afirma que uma nova produção do tipo não será feita por elas, embora adiante que a dupla prepara novidades para o segundo semestre. Esse mistério, porém, ainda leva uns meses para chegar ao fim.
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