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A invisibilidade das mulheres no sistema de proteção social

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A EC 103/2019 trouxe alterações significativas no tratamento da proteção social dos servidores públicos, de modo a conceder maior autonomia aos Estados para estabelecer os requisitos de elegibilidade dos benefícios. Em contraponto, ao tratar dos militares, incumbiu à União a competência para dispor das normas gerais relacionadas à reserva e reforma dos integrantes da Policial Militar e do Corpo de Bombeiros Militar dos estados.

A alteração visava atender uma reivindicação de isonomia entre os militares estaduais e os militares das Forças Armadas, considerando a natureza inerente às características da caserna. Daí a migração dos militares estaduais do Regime Próprio de Previdência para o Sistema de Proteção Social.

A reformulação dos sistemas não retirou, em origem, a necessidade da observância de preceitos básicos constitucionais, a exemplo do princípio da igualdade, especialmente quando estamos a falar das militares mulheres.

A reforma invisível

A EC 103/2019 não foi capaz de atender — senão superar — violações flagrantes à proteção social e previdenciária das mulheres. Em recente decisão, a Suprema Corte, por meio da ADI 7.727/DF, entendeu que normas constitucionais trazidas pela emenda, que igualavam requisitos de idade a policiais (homens e mulheres) vinculados à União, evidenciavam incompatibilidade com a Lei Fundamental de 1988.

Em perspectiva similar, é possível notar que a Lei 13.954/2019, que trouxe as diretrizes do Sistema de Proteção Social dos Militares, que basicamente é reproduzida pelos entes subnacionais, não criou qualquer distinção às militares.

O artigo 24-A, I, “a” da citada lei, é um enfático exemplo de violação à igualdade material. Isso porque a norma disciplina que a remuneração na inatividade, calculada com base na remuneração do posto ou da graduação que o militar possuir por ocasião da transferência para a inatividade remunerada, a pedido, pode ser integral, desde que cumprido o tempo mínimo de 35 anos de serviço, dos quais no mínimo 30 anos de exercício de atividade de natureza militar.

Da leitura do dispositivo, é perceptível que a militar terá que cumprir os mesmos requisitos de tempo de atividade de natureza militar que os homens, desconsiderando todas as peculiaridades pelas quais a mulheres se submetem no ambiente corporativo e social, ainda mais quando se trata de ambiente militar.

 

O contexto histórico brasileiro demonstra a gravidade da norma, já que os homens, no que diz respeito à atividade militar, sobretudo nas Forças Armadas, atuavam quase que em exclusividade na prestação desse serviço. Logo, a condição de mulher militar sugere uma dupla violação, já que a possibilidade de ingresso nas Forças Armadas decorreu de um avanço recente, de modo que a utilização desse tempo – a ser migrado às outras forças de segurança – é consequentemente inexequível em igualdade de condições.

O debate legislativo inócuo

Persiste, ainda, um ponto-cego — talvez deliberado —, em desconsiderar as características das mulheres, igualando-se os requisitos para a inatividade, já que em 28/08/2019, o deputado Capitão Wagner propunha emenda modificativa, argumentando que “A redação do PL 1.645, de 2019, do Poder Executivo, mantém a previsão de igual atribuição de tempo de atividade para os homens e  mulheres da carreira militar, na forma atualmente já existente no Estatuto dos Militares (Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1990), tanto para fins de fruição  dos direitos à proteção social, forma de cálculos dos proventos e do cômputo  para a transferência para a inatividade, aumentando, porém, o tempo de atividade do militar de carreira de ambos os sexos para trinta e cinco anos”.

 

Spacca
 

Não obstante, em 23/10/2019, o relator da Comissão Especial do PL 1.645/2019, deputado Vinicius Carvalho, afastou a distinção de tempo entre militares homens e mulheres fundamentando que “O tempo diferenciado exige maior parcela de sacrifício daqueles militares hoje beneficiados por tempo menor, além do que significa simetria com a regra das Forças Armadas e atende à equalização do tempo exigível tanto de homens quanto de mulheres, prática comum em outros países. Assim, homens e mulheres passam a cumprir o mesmo tempo, considerada a modulação proposta. A equalização do tempo de serviço para homens e mulheres, se por um lado representa sacrifício para as mulheres, por outro constitui oportunidade de ascensão na carreira, visto que o acesso aos postos de comando seria dificultado se adotado tempo de serviço menor”.

O relator, em outro parecer, reforça seu entendimento se utilizando de parâmetro estipulado na EC 103/2019, pertinente a indistinção dos policiais homens e mulheres da União, que, recentemente, foi declarado inconstitucional pela Suprema Corte.

O relator aduziu que “no Brasil, a PEC 6/2019, que trata sobre a reforma da previdência, está reduzindo a diferença entre as regras de aposentadoria de homens e mulheres. Atualmente, as mulheres se aposentam com cinco anos a menos que os homens e a PEC, aprovada em segundo turno na Câmara dos Deputados, está reduzindo a regra geral para três anos. Contudo, cabe ressaltar que, de acordo com esta PEC, para os policiais civis e agentes penitenciários federais foi extinto o tratamento desigual. Para esse grupo a idade mínima será de 55 anos, independentemente do sexo”.

Concluiu o relator, rejeitando as emendas que visavam a distinção de tempo entre homens e mulheres militares, no sentido de que “Formar uma mulher militar com um rol de direitos (ou um rol de supressão de direitos concedidos aos outros cidadãos) diferente do que é imposto ao homem militar seria retirar da mulher militar o direito de ser líder. Seria um contrassenso a tudo que se espera do papel da mulher na sociedade moderna. Diferenciar o tempo de serviço mínimo do homem militar da mulher militar seria, em última instância, condenar as mulheres a não poderem aspirar às principais funções de liderança no âmbito das Forças Armadas”.

Parece-nos, portanto, que estabelecer um ponto de partida” igualitário” desconsiderando a realidade socioprofissional, em ambiente categoricamente ocupados por homens, é forçar um tratamento isonômico meramente formal, a pretexto de que se assim não for, a mulher, por ter períodos distintos, perderia liderança

Conclusão

A invisibilidade das mulheres no Sistema de Proteção Social dos Militares não decorre de mero descuido legislativo, mas de uma opção política deliberada por igualar realidades desiguais. A equiparação de requisitos entre homens e mulheres militares ignora não apenas os obstáculos históricos que dificultaram o acesso e a permanência feminina nas corporações, mas também as dinâmicas sociais e institucionais que impactam diretamente suas trajetórias profissionais.

O discurso parlamentar que sustentou essa suposta neutralidade normativa insistiu em associar o tratamento diferenciado à negação da capacidade de liderança das mulheres, como se reconhecer desigualdades estruturais fosse retroceder em direitos. No entanto, o efeito prático dessa “isonomia” foi a negação do princípio da igualdade material, constitucionalmente garantido.

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 7.727/DF demonstrou que o tratamento uniforme entre homens e mulheres na proteção social de servidores da segurança pública é incompatível com a Constituição. A leitura que se faz, portanto, é que onde o Legislativo opta por manter posições já superadas pelo próprio controle de constitucionalidade, a resposta tende a vir por meios institucionais igualmente legítimos e eficazes.

 


Referências

Brasil, Comissão Especial do PL 1.645/2019, disponível aqui.

Brasil, Comissão Especial do PL 1.645/2019, disponível aqui.

Brasil, Comissão Especial do PL 1.645/2019, disponível aqui.

Brasil, Comissão Especial do PL 1.645/2019. disponível aqui.

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