Trump, mulheres e sangue. Não é a primeira vez que o presidente dos Estados Unidos se ocupa desses três conceitos para atacar uma jornalista. Há quase dois anos, quando iniciava a corrida à Casa Branca, já causou polêmica ao provocar a estrela televisiva Megyn Kelly, acusando-a de ter sido excessivamente dura com ele durante um debate entre os pré-candidatos conservadores. “Brotava-lhe sangue dos olhos, brotava-lhe sangue da… de qualquer lugar”, cutucou. Aquelas palavras, pelo tom, pela pausa e pelo contexto, foram interpretadas como uma referência à menstruação e a uma suposta alteração hormonal. A apresentadora, aliás, havia mencionado com insistência outros rompantes de Trump, como o fato de ele ter chamado a atriz Rosie O’Donell de “gorda” e “porca”, entre outros casos. Aquilo causou o primeiro alvoroço republicano, Trump foi desconvidado de um evento no qual participaria como orador, e uma horda de políticos republicanos se mobilizou para criticá-lo.
Nesta quinta-feira, as hemorragias voltaram – as de Trump com as mulheres e as de republicanos alvoroçados. O presidente atacou os famosos apresentadores de um programa televisivo matinal muito crítico a ele (o Morning Joe, da MSNBC), Joe Scarborough e Mika Brzezinski, mas claramente mirou mais na mulher que no seu colega homem: “A louca da Mika, de baixo coeficiente intelectual, e o psicopata do Joe vieram passar três dias em Mar-a-Lago [o resort de Trump na Flórida] no Réveillon e insistiram em me ver. Ela sangrava muito por causa de um lifting facial. Eu disse que não!”, tuitou.
Bilionário, incendiário, convictamente machista e abençoado pelos eleitores, é impossível não compará-lo a Silvio Berlusconi, que conseguiu passar 17 anos chefiando o Governo da Itália sem ser prejudicado pelos disparates que proferia. Esta última fanfarronice de Trump provocou uma indignação inédita desde a posse dele na Casa Branca. Além de colegas de ofício dos jornalistas e rivais políticos, vários republicanos clamaram contra seu presidente. O senador Lindsey Graham disse que esse tipo de mensagem “representa o pior da política na América”, e Ben Sasse suplicou: “Por favor, pare, isto não é normal e está aquém da dignidade do seu cargo”. “Estamos tentando melhorar o tom do debate, mas isto não ajuda”, lamentou Paul Ryan, líder dos conservadores no Congresso.
É possível que um presidente se comporte assim sem que nada lhe ocorra? Que países imaginam que algo assim seria possível em seus governantes? Trump, vulcânico e agressivo nas redes sociais, ataca a política econômica da Alemanha com a mesma leviandade com que chama de “fracassados” jornais como o The New York Times. O público norte-americano, tão orgulhoso da sua história e das suas instituições, já parece resignado a esse comportamento do seu presidente, mas este último despautério machista, tão virulento e dirigido a uma pessoa específica, parece ter passado dos limites.
Parece, mas não foi bem assim. Trump não respeitou fronteira alguma até agora. Impôs-se com autoridade nas primárias republicanas contra mais de uma dúzia de rivais, apesar de todos os excessos machistas e racistas que cometeu, e depois venceu Hillary Clinton nas eleições gerais batendo novos recordes nesse quesito, como ao interrompê-la num debate dizendo “Que asquerosa é esta mulher!”, e apesar da divulgação de um vídeo de 2005 no qual, durante o intervalo de um programa televisivo, ele se gabava de bolinar mulheres sem seu consentimento, aproveitando-se da sua fama e poder. “Quando você é um astro, deixam você fazer qualquer coisa… Você as agarra pela boceta. Pode fazer o que quiser”, gabou-se, entre risos. A três semanas das eleições, aquilo colocou o empresário nova-iorquino no ponto mais crítico da sua relação com o Partido Republicano, cujos pesos pesados o abandonaram. A reconciliação só chegaria com a vitória eleitoral.
Ele agora é o presidente dos Estados Unidos e, apesar de que seu nível de popularidade geral é um dos mais baixos da história do país, a porcentagem de aprovação entre os próprios republicanos resiste acima dos 80% desde que tomou posse, da mesma forma que mais de 80% dos conservadores votou nele em 8 de novembro por fidelidade partidária. O empresário já começou sua carreira política com um histórico marcado por acusações de assédio e sexismo, tanto por parte de participantes do programa de TV (O Aprendiz), como de modelos do concurso de Miss Universo.
Os republicanos estão agora de olho nas eleições legislativas de 2018 e podem se sublevar se acharem que isso é necessário para seu eleitorado. Alguns especialistas apontam que, na verdade, a personalidade de Trump é tão exagerada que pode ajudar aos conservadores marcar diferenças com o presidente e não se preocupam com um voto de castigo. Comprovaram em novembro que isso não acontece. Chegando na política como o candidato da incorreção política, fez do bullying uma bandeira. “Combate ao fogo com fogo”, justificou na quinta-feira a Casa Branca sobre os insultos dirigidos a Mika Brzezinski. “Se for atacado, responda 10 vezes mais forte”, disse Melania Trump através de seu porta-voz, o que é chocante em uma Primeira Dama que definiu a luta contra o bullying como uma das suas prioridades.
“Ele fala claro”
Muito comum nos comícios de Trump, ou quando viajamos pelos territórios que o levaram à Casa Branca, é que seus seguidores perdoem essas atitudes machistas (às vezes na forma de insulto, às vezes como um elogio impróprio a uma repórter que está trabalhando ao lado de colegas do sexo masculino). “Não é político…”, justificavam alguns, como se na verdade a linguagem natural fosse a do desprezo pelas mulheres e é apenas a correção da comunicação política que a suaviza. “Claro que não gosto do seu estilo, mas vou julgá-lo por suas ações”, também observam. “Ele fala claro, diz o que os outros não se atrevem”, é outro clássico.
Esses comentários costumam vir de homens e mulheres. Entre os eleitores de Trump convivem aqueles que sentem certo gozo revanchista com as trumpadas, irritados com o que consideram o jugo da correção política, os que diminuem a importância dos ataques racistas e machistas, e os que não os diminuem, mas acham mais importante outras questões: sua defesa do direito de ter armas, sua promessa de cortar impostos, a aversão a Clinton…
O papel que o sexismo teve na eleição presidencial dos EUA foi muito discutido, aquele que penalizou a democrata como candidata e aquele que considera que as atitudes de Trump não são tão importantes. O sangue, que tanto preocupa Trump quando se trata de atacar as mulheres, em seu caso, nunca chega ao rio.