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Violência de gênero na internet: investigação pela PF é avanço, mas precisamos de respostas em múltiplas frentes, aponta promotora Silvia Chakian

Saiu no site COMPROMISSO E ATITUDE:

 

Veja publicação original: Violência de gênero na internet: investigação pela PF é avanço, mas precisamos de respostas em múltiplas frentes, aponta promotora Silvia Chakian

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Em entrevista exclusiva ao Portal Compromisso e Atitude, a promotora de justiça Silvia Chakian, do Ministério Público do Estado de São Paulo, comenta os desafios para enfrentar a violência de gênero na rede e avalia a promulgação da Lei 13.642/2018, que acrescenta “atribuição à Polícia Federal no que concerne à investigação de crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres”.

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Para Silvia Chakian, promotora especializada em violências contra as mulheres, a ampliação da atribuição de investigação pela Polícia Federal é certamente um avanço, mas representa apenas um passo entre uma série de medidas necessárias para lidar com os casos e coibir a perpetuação dessas violências na rede.

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Entre elas, a promotora ressalta: além de ainda ser preciso uma atualização da legislação penal para tipificar esses crimes, acima de tudo são necessárias transformações em múltiplas frentes, incluindo a ampliação da perspectiva de gênero no Estado e na sociedade. Isso é essencial, por exemplo, para a desnaturalização de padrões discriminatórios que levam à culpabilização da vítima também nessa modalidade de violência contra as mulheres.

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Confira a entrevista:

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Quais são as mudanças introduzidas pela Lei 13.642/2018, suas possibilidades e limites?

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A primeira mudança que essa lei traz é estabelecer e ampliar o rol de atribuições da Polícia Federal para investigar quaisquer crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definido como aquelas mensagens que propagam ódio ou aversão às mulheres. A lei explicita o que será entendido por misoginia, isto é, toda conduta que propagar, de alguma forma, ódio e aversão às mulheres. Esse é um conceito amplo, que precisará ser interpretado.

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É preciso destacar que a competência da Justiça Federal para investigar esses casos não elimina a competência da Justiça Estadual, ela é concorrente – ou seja, as polícias estaduais continuam também podendo investigar. O que a Lei 13.642 trouxe foi a ampliação do rol das atribuições da Polícia Federal para dizer que ela também deve investigar. E isso entendo como positivo.

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É importante destacar também que, quando a lei fala de atribuições para investigar por parte da Polícia Federal, isso não significa mudança de competência para processar e julgar esses casos. A competência para processar e julgar esses crimes continua sendo da justiça estadual. Somente os casos excepcionais como, por exemplo, um caso de pedofilia – e aí tem um rol muito estreito –, são processados na Justiça Federal. Então, essa lei só dispõe, só trata da investigação, da atribuição de polícia, e não de juízes, de varas, de justiça. Trata-se da competência para investigar.

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E como essa ampliação é positiva para quem lida com os casos?

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Para quem trabalha no dia a dia com esse tipo de criminalidade na internet, há muitas dificuldades – desde comprovar essas condutas criminosas, preservar esses dados, identificar a autoria e retirar o conteúdo indevido da rede. Boa parte dessas dificuldades estão relacionadas à questão da tecnologia mesmo, da forma como são os provedores, de estarem hospedados em sites estrangeiros. Então, é fato que há uma dificuldade operacional e a Polícia Federal, com essa atribuição de investigar, trará mais recursos para essa investigação.

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A meu ver, a Lei 13.642/2018 soma, agrega. As dificuldades são imensas e a Polícia Federal hoje está aparelhada para esse tipo de investigação, de combate, para preservação de dados, buscar autoria e conseguir a retirada do conteúdo indevido da rede. No enfrentamento desse tipo de criminalidade convivemos com várias dificuldades e essa questão da investigação é uma delas.

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Por outro lado, fazendo uma análise crítica, é preciso lembrar que outra dificuldade diz respeito à falta de uma legislação adequada, que traga uma pena de gravidade compatível com as consequências desse tipo de criminalidade. Então, o aprimoramento da lei precisa vir e isso é urgente. Não temos uma legislação penal adequada para esses casos.

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É preciso atuar em múltiplas frentes, certo?

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Sim, porque o aprimoramento legislativo é urgente, mas também não é suficiente, não é o único ponto a se avançar. Precisamos enxergar – assim como na Lei Maria da Penha – a legislação penal sendo aprimorada como um ponto de partida.

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Hoje, para quem atua no dia a dia, uma grande dificuldade está relacionada a lidar com um sistema de justiça ainda muito conservador no trato dessas questões. E isso não se consegue mudar com uma nova lei penal e nem com essa atribuição da Polícia Federal já instituída. É um problema imenso, que demanda estratégias múltiplas de aprimoramento.

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Ou seja, a legislação é um ponto. A Lei 13.642/2018 vem como um avanço, porque precisamos ter mais instrumentos de investigação. Mas aí é preciso considerar, por exemplo, a compreensão de qual é o perfil dessas vítimas que têm acesso à justiça, por exemplo. A meu ver, é um recorte muito definido de vítimas. Não estou nem falando de classe social, porque temos vítimas de todas as classes sociais. Mas, só pelo fato de elas terem acionado o sistema de justiça, já são vítimas que, em algum momento, tiveram acesso à informação – o que muitas mulheres ainda não têm.

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É preciso ampliar o acesso à informação, sobre o que fazer, onde buscar ajuda, quais os instrumentos à disposição – inclusive internos, como as políticas do Google e do Facebook – para poder lidar já com essa violência. É preciso informar sobre como ter acesso aos mecanismos que esses sites já dispõem, como denunciar e como ocultar esses materiais. E importante compreender que o sistema de justiça também pode ser acionado. Então, vejo que precisamos avançar, em primeiro lugar, na informação da sociedade em geral, do que se pode fazer diante de um caso de violência de gênero na rede.

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E o que é preciso aprimorar no sistema de justiça para receber essas mulheres?

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Existe, infelizmente, uma parcela de mulheres que não acionam o sistema de justiça porque não acreditam nas instituições, e isso também é grave e essa falha é do Estado e também do sistema de justiça, porque se as mulheres não confiam, muito provavelmente é porque as respostas que estão sendo dadas não são adequadas.

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É preciso também imaginar que existe hoje uma diferença muito grande nesses crimes praticados na internet e aí, faço uma divisão em duas categorias. Uma delas é a praticada nesse contexto da Lei Maria da Penha, ou seja, o parceiro ou ex-parceiro, o conhecido, a pessoa que é do relacionamento da vítima, o ex-namorado que pratica a violência na internet, por exemplo – seja ela disseminação indevida de conteúdo, seja ciberbullying ou até uma modalidade que tenho visto muito, que é a confecção de perfil falso para atentar contra a imagem da mulher. Então, são casos que estão sendo tratados nas áreas de violência doméstica e familiar, nas varas especializadas, em que já se tem uma perspectiva de gênero maior no trato desses casos.

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Por outro lado, há um número muito grande de violências na internet que não são praticadas no contexto da violência doméstica e familiar e que está sendo tratada nas varas criminais comuns. Aí entram os ciberbullyings, os discursos de ódio, por exemplo, essas listas como aquele caso famoso em que as meninas eram listadas como ‘vagabundas’ ou ‘bonitas’. E aí há uma pulverização muito grande porque, por exemplo, os crimes contra a honra vão até o juizado especial criminal, que não é o local adequado para lidar com esse tipo de caso em que o olhar de gênero é fundamental. Ou chega em uma vara comum, em que aqueles profissionais que estão ali têm uma pilha de processos até o teto, onde tem latrocínio, roubo, estelionato, tráfico de entorpecentes, quadrilha. A tendência é olhar para essa violação de direito que aconteceu na internet como uma questão de menor importância.E aí não adianta a lei adequada, não adianta a Polícia Federal com os seus instrumentos para investigar.

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Precisamos refletir sobre a importância desse olhar de gênero, que hoje já existe mais nas varas de violência doméstica, ser também aplicado nesses outros casos de misoginia, de discurso de ódio e outras violações de direito na internet. É toda uma mudança que precisa ser feita, de compreensão de que essa violência é gravíssima e que ela traz consequências, inclusive, no aspecto de danos à saúde.

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Essa, inclusive, é uma estratégia que venho utilizando de denunciar esses casos de violência na internet como dano, como lesão à saúde, porque é possível, por meio de relatórios e avaliações psicológicas, detectar que essas meninas e mulheres sofreram danos emocionais e físicos, abalos e transtornos, como o desenvolvimento de síndrome do pânico, depressão, isolamento social, transtorno da sexualidade, alimentar, do sono. Atuei em vários casos com relatórios em que foi possível detectar que, em função da violência, houve o desenvolvimento desses transtornos.

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É preciso conscientizar de que essa violência não é uma questão de menor importância, ela é gravíssima e pode ter consequências devastadoras, muitas vezes até maiores do que a violência física e psicológica praticadas fora da rede.

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São muitos os avanços ainda necessários, inclusive a questão da indenização nesses casos. Houve uma decisão muito recente do STJ [saiba mais], no julgamento de recursos especiais repetitivos, dispondo que o dano moral para a vítima de violência doméstica e familiar é evidente, ele prescinde de comprovação, ele é inerente à própria questão da violência. Já está caracterizado que, quando uma mulher sofre violência doméstica e familiar, isso representa um dano moral que deve ser indenizado.

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No entanto, há pouquíssimas respostas da justiça na fixação de danos morais. Estudos internacionais tratam dessa questão do dano moral, falando do dano à saúde, de dano ao plano de vida, dizendo que todo indivíduo tem um plano de vida, tem um projeto de vida, e que determinadas violências, como é o caso da violência praticada na internet, atentam contra esse plano.

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Trata-se de violação de um direito humano. Uma menina que mora em uma cidade pequena, onde todo mundo a conhece, que idealiza ter uma carreira, por exemplo, e sofre uma violência dessa, em que ela passa a ser apontada como vagabunda, como indigna de respeito, isso interrompe o plano de vida e com graves consequências. Você se vê interrompida em relação aos seus sonhos por força de um crime de internet, em que as pessoas, muitas vezes, não se sensibilizam, não veem como grave. Mas se você for analisar a vida daquela vítima, é gravíssimo e ela não precisa tentar o suicídio para essa gravidade estar evidente.

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São modalidades novas de violência, porque envolvem tecnologias mais recentes, como a própria internet, mas o julgamento da moralidade sexual acontece como em outras violências de gênero, certo?

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A raiz é a mesma. As concepções discriminatórias e machistas utilizadas nesses casos, os preconceitos e estereótipos de gênero são idênticos, às vezes, até com mais rigor moralista, porque a ideia de que a mulher colocou-se naquela situação de risco é, infelizmente, muito presente. Existe a noção de que a mulher contribuiu para aquele desfecho ao fazer as fotos ou o vídeo, por exemplo.

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É quase que automática essa análise do comportamento da vítima, como se a vítima tivesse contribuído, se colocado em uma situação de risco, sem nenhuma análise de que ela teria direito a produzir esse material, sem nenhuma análise de que se vive hoje em uma sociedade em que tudo o que queremos é o direito de fazer o que quiser, onde quiser, inclusive como uma afirmação de gênero mesmo. Mas esse tipo de reflexão nem passa pela cabeça de quem julga o comportamento da vítima. Ela é muito mais rasa e superficial, no sentido de: ‘você fez, então não reclama’.

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Acho que essa é uma reflexão muito importante: a investigação é importante, óbvio, mas é pouco. Não tenho nenhuma ilusão de achar que, com isso, o julgamento vai ser mais adequado e incorporar a perspectiva de gênero – isso não vem automaticamente com uma lei, vem com uma mudança muito mais profunda.

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E quais são os tipos de violência mais presentes, que têm mais acontecido na sua experiência?

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No contexto da Lei Maria da Penha, de violência doméstica e familiar, a maioria dos casos são de exposição indevida, de disseminação indevida de conteúdo, e de criação de perfil falso. Além da Lei Maria da Penha, há casos que podem ser configurados nos crimes contra a honra; há ameaças; eventualmente, extorsão, que é mais raro; constrangimento ilegal; e perturbação da tranquilidade. São os tipos penais mais comuns. Tenho trabalhado a partir do dano à saúde, ou seja, a lesão à saúde, prevista no artigo 129 do Código Penal. Também há casos de manifestação explícita de ódio e de incitação e apologia a crimes contra as mulheres, como incitar o estupro.

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Para uma pessoa que sofreu uma violência online, o que você indicaria?

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É difícil dar uma indicação geral, mas, em primeiro lugar, diria para procurar ajuda sempre. Se possível, tentar preservar todo o material, tirando prints por exemplo. Não é necessário fazer ata notarial do que foi divulgado em cartório, como muita gente pensa, sendo que a ata notarial é caríssima de fazer. O importante é preservar de alguma forma, como fazer os prints.

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Existem também alguns canais de denúncia – além do sistema de justiça e de procurar a polícia – para fazer a retirada desse material, em canais do próprio site, do próprio provedor em que aquilo foi veiculado, onde foi praticada a violência. O Facebook, por exemplo, tem as suas estratégias de denúncia, o Instagram e o Google também. Dá para procurar esse caminho dentro do canal onde foi feita a violação dos direitos humanos. A SaferNet Brasil tem vários caminhos também para fazer essas denúncias de violência na internet. E isso tudo sem prejuízo de acionar o sistema de justiça.

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No sistema de justiça hoje, instaurando um boletim de ocorrência e dando início a uma investigação, conseguimos imediatamente uma medida protetiva de urgência de proibição, nos casos em que o autor é conhecido, em contexto de violência doméstica e familiar. Com isso, já sai uma ordem judicial proibindo o autor de compartilhar qualquer outro material, sob pena de prisão.

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É preciso lembrar que, em muitos casos, o sujeito está ameaçando divulgar – ou seja, ele não divulgou ainda, mas tem o material em poder dele. Isso é muito comum e é um momento importante de denunciar, porque podemos acionar essa estratégia da ordem judicial com proibição determinando que, se ele divulgar, pode ser preso.

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Essa é uma estratégia para evitar que o material caia na rede, considerando que, em matéria de violência na internet, a prevenção é sempre melhor. Inclusive ela pode ser adotada quando a mulher está receosa, quando ainda não houve a violência, não houve ameaça, mas ela terminou o relacionamento e existe uma animosidade e o sujeito tem em poder dele materiais como vídeos, fotos, pendrives. Nesses casos, a mulher pode e deve noticiar isso em uma delegacia, por exemplo, para que saia uma ordem de busca e apreensão de retirada desse conteúdo do poder dele. É um direito da mulher ela não querer que fotos e vídeos da intimidade dela fiquem em poder de um sujeito com quem ela já não se relaciona mais, como forma até de prevenção de que esse material seja divulgado.

 

 

 

 

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