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Três meses depois da tragédia de Brumadinho, bombeira que resgatou vítimas na lama é modelo para mulheres que querem entrar na profissão

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE

 

Veja publicação original:   Três meses depois da tragédia de Brumadinho, bombeira que resgatou vítimas na lama é modelo para mulheres que querem entrar na profissão

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Karla Lessa, 36 anos, sempre gostou de adrenalina. Na hora de escolher uma carreira, se viu encantada por uma profissão onde só havia homens: a de bombeiro. No dia 25 de janeiro de 2019, a major, primeira mulher comandante de helicóptero do corpo de bombeiros do Brasil, estava de plantão no aeroporto da Pampulha, em Minas Gerais, quando a campainha de chamado tocou. Ela ainda não sabia, mas estava prestes a fazer um resgate emblemático, para um país que, estarrecido, acompanhava ao vivo pela televisão os primeiros momentos após o rompimento da barragem da Vale do Rio Doce. Três meses depois da queda da barragem, é exemplo para meninas que pretendem seguir a carreira e símbolo da força feminina

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Por Kátia Lessa

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“Nasci em Belo Horizonte. Sou primeira filha de pais comerciantes e tenho um irmão quatro anos mais novo. Sempre fui bastante estudiosa e adorava descobrir coisas. Nunca sonhei em ser modelo nem atriz, como a maioria das garotas da minha idade. Falava em ser cientista, mas meu pai achava que era uma coisa de gente doida. Verdade é que, quando pequena, ia aos parques e só queria experimentar os brinquedos mais perigosos – deixando as filas dos castelos livre para as outras meninas. Estudei em colégios militares, onde os esportes eram muito valorizados. Então, pratiquei diversas atividades, como natação, handball etc. E adorava! Fora da escola também tive uma infância muito ativa. Escalava árvores, descia barrancos, brincava na rua. Era praticamente um moleque.

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Quando ainda estava na escola, um grupo de policiais e bombeiros foi até lá divulgar o curso de formação de oficiais. Fiquei muito encantada. A ideia não me saiu da cabeça até a hora de prestar vestibular, aos 18 anos. Como não sabia bem o que queria fazer da vida, fiz uma prova para cursar Engenharia de Produção Civil e outra para o curso de formação de bombeiro. Passei nos dois e, ainda cheia de dúvidas, escolhi a segunda opção e tranquei a faculdade. Apesar de não estarem familiarizados com a ideia, minha família não demonstrou nenhuma resistência, pois costumam apoiar minhas decisões. E segui meu desejo.

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Passei o início dos quatro anos de curso com dúvidas se aquele seria mesmo o futuro que queria para mim. Ao mesmo tempo que estava cada vez mais envolvida com tudo o que estava vivendo, como o conhecimento técnico e científico, as aulas práticas que me mostravam que poderia ser forte e superar meus limites, seguir aquela carreira me parecia algo muito distante da minha realidade. Ao mesmo tempo, como aventureira, percebi que o Corpo de Bombeiros poderia me levar a lugares que jamais poderia ir sozinha, e a possibilidade de ser servidora pública significava segurança financeira e estabilidade de emprego, algo que poderia fazer grande diferença para minha família.

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Acontece que, no nosso imaginário, bombeiro está associado a caras grandes, musculosos… ‘Será que uma mulher teria alguma chance de crescer nessa carreira?’, pensava. Por outro lado, conforme o curso corria, comecei a descobrir em mim as mesmas características que via em bons instrutores homens. Calma para agir em momentos de estresse, proficiência técnica, postura. Além do mais, a Tenente Silva, única mulher que me dava aula era extremamente eficiente e acabou virando minha inspiração. Eu a admirava pela forma que se comportava. Sempre me pareceu muito forte, determinada, respeitada por sua postura de liderança frente à equipe de trabalho. Sabia o que fazer, executava e ensinava. Tinha um ótimo entrosamento com a tropa, era confiável e capaz de desenvolver qualquer tipo de missão.

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Mas a confirmação da minha escolha profissional só veio mesmo quando comecei a trabalhar. Com o tempo, fui percebendo que gostava da sensação de voar e de como nossa percepção de mundo fica diferente quando vemos tudo de cima. Descobri também que gostava da adrenalina e do atendimento direto a população, que é muito recompensador. Vi que não teria rotina e que as áreas de conhecimento e atuação ali eram amplas. Nesse momento, senti que teria que mostrar que era tão boa quanto os homens. No militarismo, a ascensão de postos é feita por nota e a concorrência é grande. E eu sempre soube que queria fazer a diferença, não ser apenas mais uma.

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Foi nisso que concentrei todo o meu esforço. Já tinha a consciência de que nada cai do céu e sabia que tudo era uma questão de dedicação. Antes de prestar a prova na corporação, por exemplo, eu não conseguia fazer flexão. Então, toda folga que tinha, ficava em casa com os pés apoiados no sofá e as mãos no chão treinando o fortalecimento dos braços. Só anos depois entendi que o essencial na minha profissão é ser emocionalmente forte. Não podemos nos dar ao luxo de cair em armadilhas emocionais porque vidas dependem das nossas decisões. Me formei na Academia de Polícia Militar de Belo Horizonte, em 2004.

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Às 12h55 da tarde de 25 de janeiro tudo isso foi fundamental. Estava almoçando no plantão do aeroporto da Pampulha quando a campainha de atendimento tocou. Fui até a sala de monitoramento e na tela vi a informação de rompimento de barragem. Um rapaz ligou para o 193 chorando muito. Dizia que a lama tinha levado muitas coisas. Depois disso, o telefone não parou mais de tocar.

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Logo fui buscar os materiais de resgate e embarquei com o copiloto, um médico, um enfermeiro e dois bombeiros operacionais no helicóptero, que funciona como uma UTI aérea. Não tínhamos ideia do tamanho da tragédia. Saímos com a informação de rompimento de barragem, mas até o momento não sabíamos quantas pessoas estavam envolvidas. Começamos a notar que a situação era dramática quando sobrevoamos a ponte rompida. As casas não tinham telhado e a locomotiva estava descarrilhada.

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Resolvi então desembarcar em um campo de futebol e tirar os bancos da aeronave para deixá-la mais leve, espaçosa e resgatar o máximo possível de pessoas. Quando a paisagem começou a revelar o mar de lama, eu ainda não tinha noção do número de vítimas. Sou treinada para tomar boas decisões rapidamente, e ali achei que primeiro deveríamos voar até o rio Paraopeba para ter consciência da dimensão da situação.

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Durante o sobrevoo, vi um grupo de pessoas gesticulando para a aeronave. Dois rapazes entravam na lama e uma mulher estava deitada e gritando logo a frente. Era a [adolescente] Talita de Oliveira. Notei que seu fêmur estava fora da posição normal e que ela parecia se afogar. Deixamos os médicos no campo de futebol, que foi nossa base hospitalar, e iniciamos o resgate de Talita.

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Nessa hora, só pensava em tirar aquela menina de lá com vida. Concentrada na operação, praticamente sem emoção nenhuma, sabia que o voo tinha que ser muito estável e próximo da vítima para que o bombeiro tripulante pudesse colocá-la na aeronave. No esforço de arrancá-la dali, ele afundava sem sucesso a cada nova tentativa. A moça estava muito pesada e seu único apoio ali era um toco de árvore. E, como o helicóptero não podia encostar nas pessoas, decidimos usar o equipamento de afogamento para resgatá-la.

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Na posição de piloto, sem visão da cauda do helicóptero, precisava que outro tripulante fosse meus olhos em relação à distância das árvores. Era tudo muito delicado e eu tinha que manter a calma e a confiança. Sem me abater, pairei a 70 centímetros da lama com uma aeronave que pesa três toneladas. A manobra era complicada: tinha que controlar a embreagem usando as duas mãos com comandos diferentes e os dois pés ao mesmo tempo. Uma das mãos determina se o veículo sobe ou desce. A outra, se vai para frente ou para trás, direita ou esquerda, e os pedais, se os giros são em sentido horário ou anti-horário.  É preciso muita coordenação motora, muita calma, muito treino. Não por acaso, quando comecei a pilotar, visualizava o helicóptero como um cavalo bravo.

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Quando finalmente a colocamos no helicóptero, senti um alívio enorme. Havia um misto de ansiedade e esperança por encontrar mais gente viva, precisando de ajuda como ela. Enquanto realizava o primeiro resgate, recebi a informação de outra aeronave da PM, que havia chegado ao local. Era outra vítima politraumatizada, que aguardava nosso socorro. Eu não podia me desconcentrar.

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Rapidamente, deixei a adolescente que havia resgatado no campo de futebol aos cuidados do médico e fui buscar a outra garota [a auxiliar de cozinha Paloma Prates da Cunha]. Nesse momento, percebi que estava com pouco combustível e tive que tomar outra decisão difícil: salvar mais gente ou deixar as duas já resgatadas para o hospital? Decidimos levá-las porque, segundo os médicos, a Talita corria risco de morte.

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Sem perder tempo, voltei ao aeroporto de Belo Horizonte para abastecer e encontrei o vice-governador e outras autoridades. Todos à minha espera. Queriam saber tudo: o que eu tinha visto de cima, qual era a situação real da queda da barragem, se havia muita gente pedindo socorro. Mas eu estava funcionando em modo máquina porque o volume de decisões lógicas e estratégicas que precisava tomar era imenso e tempo ali significava vida.  Àquela atura, já havia entendido que, naquele território, o helicóptero faria toda a diferença. Lembro de ter respondido alguma coisa muito rapidamente e partido. Naquele dia fiz esses dois resgates. Nos dois dias seguintes, 26 e 27 de janeiro de 2019, assumi a coordenação das operações aéreas, estabelecendo o fluxo de trabalho a ser adotado. Posteriormente voei novamente, transportando equipes, cachorro, materiais, corpo e seguimentos.

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Dormi poucas horas durante o fim de semana. Só comecei a desligar meu piloto automático interno na segunda-feira, meu primeiro dia de folga. Em casa, encontrei meu marido cheio de orgulho. Assisti à filmagem do resgate a seu lado e apenas sorri quando ele disse que eu estava famosa. Ali, sentada no sofá de casa, parece que caiu a ficha de tudo o que havia acontecido. Só então descobri a quantidade de famílias que não puderam enterrar seus familiares desaparecidos e, vendo o noticiário na TV, chorei tudo o que eu não havia chorado.

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Sempre procuro me informar como está a recuperação da Talita e da Paloma e me alivia saber que elas estão melhorando. Durante o resgate, Paloma parecia um boneco de cera, toda coberta de lama. Nunca vou esquecer o momento em que, ao desembarcá-la no campo de futebol perguntei se ela estava com mais alguém e, imediatamente, uma lágrima surgiu e ficou parada entre o canto do olho e a pele enlameada. Ela respondeu que o marido, o filho e a irmã estavam lá também. Pelo olhar, notei que sua dor emocional superava em muito a física.

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Outro dia uma amiga me disse que vou influenciar uma geração de meninas que saberão que podem ser piloto porque viram esse resgate ser comandado por uma mulher. Fico feliz de abrir possibilidades que não tive para aquelas que se identificarem. Exemplos de bons desempenhos podem mudar a visão das pessoas ao redor. Minha família mesmo já fez comentários machistas, até me ver atuando e entender que aquilo que diziam era bobagem. Percebo que muitos deles ainda associam feminilidade à fraqueza, uma pena. Hoje, tenho a consciência de que não dá para ganhar todas, mas procuro levar comigo as experiências positivas. E, como mulher e profissional, sei que podemos fazer a diferença.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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