De início, era para ser apenas uma noite em um bar do Rio de Janeiro regada a cerveja e a debates futebolísticos sem fim. Eram quatro mulheres – Kiti Abreu, Penélope Toledo, Dadá Ganan e Natália Moreira -, duas cariocas e duas paulistas, que queriam se encontrar para bater um papo sobre o esporte que as unia e sobre o preconceito em comum que as incomodava tanto na arquibancada.

Mas aí elas falaram sobre isso no grupo do WhatsApp e as outras 30 ou 40 que faziam parte também gostaram da ideia. Calma, vamos adiar a data, assim mais gente tem como se programar pra vir, certo? O problema é que tanta gente começou a se programar, que o bar começou a ficar pequeno. Será que tem lugar para 200, 300 pessoas?

“Tudo começou em um grupo que tínhamos para debater sobre Futebol, mulher na bancada, jogos da rodada, campeonatos e tal. Aí em fevereiro, a Penélope disse que estava a fim de ir num barzinho no Rio tomar uma cerveja e debater sobre mulher e futebol, e chamou as minas do Rio”, contou às dibradoras Natália Moreira, que é de Campinas e ficou com vontade de participar do encontro em terras cariocas.

“Aí a Dadá (de São Paulo) pegou o bonde até o Rio e várias meninas do grupo acharam bacana. Aí nós 4 tivemos a ideia de adiar a data para que todas se programassem para estar presentes. E foi tomando uma proporção GIGANTESCA, um boteco não suportaria tantas meninas”, disse.

A proporção foi tanta que só esse grupo de WhatsApp – que antes tinha menos de 40 meninas – já tem 197 participantes. E o encontro, que era para ser no bar, aconteceu no Museu do Futebol no Pacaembu, em São Paulo, e reuniu mais de 350 torcedoras para debater o machismo na arquibancada.

No sábado, 10 de junho, o auditório foi tomado por mulheres dos mais diversos cantos do país – de Belém ao Rio Grande do Sul. E o que elas tinham de mais especial? O escudo que carregavam no peito e o amor que as movia para conquistar mais um espaço: o de torcer livremente no estádio ou em qualquer lugar.

Representantes de cerca de 50 torcidas organizadas participaram do I Encontro Nacional de Mulheres de Arquibancada no Museu do Futebol. Durante todo o dia, elas foram ouvidas, encorajadas e puderam propor melhorias para que o estádio também seja um espaço que pertença a elas. Muitas delas – rivais no estádio – já se conheciam. Mais do que ter em comum seu amor pelo clube, elas tinham também o mesmo preconceito enfrentado nas arquibancadas.

“Já somos minoria, mas precisamos nos unir e estar juntas, deixando a rivalidade de lado”, disse Nathalia, integrante da Sangue Jovem, torcida organizada do Santos.

Todas elas tinham pelo menos uma história para contar sobre o preconceito que sofrem dentro e fora do estádio. Os tão conhecidos “não podes” que são distribuídos às mulheres deliberadamente na arquibancada – “não pode ir de short”, “não pode tocar na bateria”, “não pode puxar grito”, “não pode balançar a bandeira”, e por aí vai.

Gabi, torcedora do Vitória e membro da Brigada Marighella, contou que, certa vez, na bancada, começou a puxar músicas para apoiar o time, mas ninguém a acompanhava.

“Percebi que, depois que um homem puxava os cantos, todo mundo ia junto. Fui silenciada na arquibancada por ser mulher e ninguém queria cantar o que eu puxava”, disse. Também revelou que foi desafiada por outros torcedores a dizer qual era a função do volante dentro do time e soltou: “Meu amigo, eu quero é que se foda o volante, eu quero é ver gol do Vitória!”.

Os relatos de machismo são muitos, mas nem por isso elas desistem de buscar seu espaço como torcedoras. Outras mulheres que estiveram no debate contaram sobre as conquistas que conseguiram aos poucos e a duras custas pela persistência.

Thayna, que faz parte da Loucos pelo Botafogo ressaltou que, na organizada, desde 2006 há mulheres ocupando cargos importante no grupo e duas delas fazem parte da bateria. “Quem diria que isso aqui poderia acontecer. Imaginar isso dez anos atrás seria impossível. Como imaginar que viríamos pra São Paulo debater esse assunto com nossas rivais?”

Ericão é uma das sócias-fundadoras da Fogoró e se orgulha muito disso e do que conquistou lá  dentro. “Resistimos muito porque queríamos participar das caravanas e das ‘viagens de guerra da torcida’. Ir assistir a um jogo na Vila Belmiro sempre foi tenso e perigoso, mas eu fui a pioneira a aceitar o desafio e com isso abri espaço para outras mulheres que queriam fazer o mesmo”, revelou.

Dadá Ganam Ferreira, uma das organizadoras do evento, foi uma das que bradaram por igualdade no palco: “Quero tocar minha bateria e tremular minha bandeira, sim. Somos torcedoras e não devemos abaixar a cabeça para nenhum marmanjo”.

Presença masculina

Havia alguns – poucos – homens que participaram do debate delas no Museu do Futebol como representantes da Anatorg – Associação Nacional das Torcidas Organizadas. Ao final, eles puderam falar um pouco sobre o trabalho da organização e dar algumas opiniões (desastrosas) sobre a participação das mulheres nos estádios.

Um deles, que já fez parte da Torcida Estopim, do Corinthians, chegou a comentar que, se uma torcida organizada não permite que uma mulher balance a bandeira, ela deveria procurar uma outra torcida que permitisse que ela fizesse isso. Tomou uma sonora vaia, é claro, e justificou que isso faz parte da “ideologia” de cada torcida.

“Como vocês vão mudar essa realidade? Não tem como”, ele disse. Ao plateia não hesitou em responder: “Vamos mudar, sim, cada dia é uma luta e não vamos desistir”. Afinal de contas, nossas conquistas nunca vieram de mãos beijadas. Foi preciso muita luta para conquistar o direito de votar, de trabalhar, de usar calças, até. Assim será também na arquibancada, e a palavra aqui é RESISTIR, em vez de desistir.

Propostas

As mulheres deixaram o Museu do Futebol determinadas a buscar mudanças. Por isso, elas elaboraram uma lista de ações que deveriam vir dali para que a realidade fosse diferente no futuro. Algumas delas incluíam a instalação de uma delegacia da mulher para acolher denúncias de assédio dentro do estádio, a organização de encontros regionais frequentes entre as torcedoras, e buscar uma representação feminina na Anatorg. (Veja a lista completa aqui).

O recado que ficou desse dia histórico não poderia ter sido resumido melhor senão por essa frase de Gabi, torcedora do Vitória: “Se liga, se liga, se liga seu machista, porque a arquibancada vai ser toda feminista”. Ô se vai!