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Resposta sobre possibilidade de autoaborto não deve vir do Supremo

Saiu no site CONJUR:

 

Veja publicação original: Resposta sobre possibilidade de autoaborto não deve vir do Supremo

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Por Paulo Rodrigo Guedes Fontes

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A ministra Rosa Weber convocou audiência pública para debater a questão do aborto nos autos da ADPF 442, em que o Psol pede que a corte suprema exclua da incidência dos artigos 124 e 126 do Código Penal o autoaborto praticado até a 12ª semana de gestação, como ocorre em diversos países; requer o partido, pois, que o STF “descriminalize” o aborto praticado nas primeiras semanas de gravidez.

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A questão do aborto pode ser emblemática para a discussão do ativismo judicial e sobre quem deve dar a “última palavra” sobre determinados temas em nosso Estado Democrático de Direito.

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É sabido que, por duas vezes, em ações de controle abstrato, o STF esteve às voltas com a questão do aborto. Inicialmente, a corte autorizou as pesquisas com células-tronco embrionárias (ADI 3.510) e, em seguida, permitiu o aborto do feto anencéfalo (ADPF 54). Os argumentos utilizados pelos ministros nessas decisões não representaram a descriminalização do autoaborto em geral, pois baseados principalmente na inviabilidade da vida em ambos os casos, tanto do feto anencéfalo quanto dos embriões excedentes de procedimentos de fertilização.

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Embora particularmente defenda a possibilidade do autoaborto nas condições apontadas pelo Psol, penso que a resposta para o problema não deve vir do STF.

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Temos visto com frequência, inclusive nos votos dos ministros em polêmicas recentes, uma defesa sempre enfática das possibilidades da interpretação constitucional. Evidentemente que não nego o alcance da interpretação, mas é preciso buscar seus limites, aquele ponto em que a interpretação que se quer apenas concretizadora dos princípios constitucionais deixa de ser interpretação para resultar propriamente na criação de uma norma jurídica nova. Jeremy Waldron chama a atenção para esses casos envolvendo direitos fundamentais em que, segundo ele, o desacordo não afetaria apenas a sua aplicação marginal, mas o próprio centro ou núcleo da compreensão do que seria determinado direito, não sendo mais uma questão de interpretação[1].

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Não nego, repito, que a atividade judicial, e a do juiz constitucional em particular, seja criativa e inclua inevitavelmente elementos morais. Não desmereço também a importância dos princípios jurídicos e constitucionais, com sua estrutura distinta das regras, muitas vezes com densidade semântica e valorativa capaz de impor decisões concretas, como nos casos já citados do feto anencéfalo e das células embrionárias. Mas há que se reconhecer em determinadas questões, à falta de maior especificação no texto constitucional, que tão somente os princípios, com sua reconhecida abertura, não constituem parâmetros normativos suficientes para a decisão.

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No caso do aborto, existem concepções cognitivas e valorativas opostas a seu respeito, que não podem ser dirimidas com base nas previsões constitucionais gerais do direito à vida, da dignidade da pessoa humana ou do direito à intimidade. A tese concepcionista advoga que o início da vida começa com a fecundação, enquanto a tese sencientista defende que a vida passível de proteção jurídica se inicia com a maturação do sistema nervoso do embrião, coadunando-se, portanto, esta última teoria, com a defesa do aborto nas primeiras semanas. Tais teses, como dito, esbarram em insuficiências cognitivas (quando começa a vida humana?), que podem um dia ser superadas, mas exprimem sobretudo conflitos de valores e visões de mundo que não podem ser resolvidos de maneira racional.

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Robert Alexy admite que em certas situações a colisão de princípios não pode ser resolvida através da ponderação e fala aí numa discricionariedade em favor do legislador. Seriam os casos de discricionariedade estrutural e epistêmica ou cognitiva; são aqueles em que não se chega a uma conclusão racional sobre qual valor ou princípio deve preponderar num determinado conflito e, portanto, deve prevalecer o que o autor chama de “princípio formal da competência decisória do legislador democraticamente legitimado”[2].

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A legitimação do juiz constitucional para questões tão difíceis adviria, segundo alguns autores, da existência do que Dworkin chamou a “única resposta correta” existente nos chamados hard cases. Mas a tese é rejeitada por boa parte dos constitucionalistas modernos, como Alexy[3] e Zagrebelsky[4]. Um dos argumentos para recusá-la, que utilizei na minha tese de doutorado, seria o relativismo ou não cognitivismo moral, mesmo numa versão moderada. Ainda que se admita existirem verdades no campo moral, fornecidas por uma moral natural ou fruto do desenvolvimento histórico e social, numa determinada altura os valores são preferências ou atitudes, de maneira que não fornecem uma única resposta correta para certas questões morais[5].

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No lugar de achar que a Constituição tem sempre resposta para as grandes questões sociais e morais, como o aborto e a eutanásia, é possível uma decisão do STF baseada num juízo de insuficiência normativa e epistemológica. A corte declara que não lhe compete ponderar entre os valores em choque, deixando a decisão para o legislador, num exercício de autocontenção ou reserva epistêmica. É difícil encontrar o ponto em que tal postura autocontida deve prevalecer, sendo talvez útil a consideração de Cass Sunstein de que “a incerteza moral, na qual a sociedade se encontra dividida” recomenda ao juiz constitucional uma postura minimalista[6].

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Penso que uma decisão com esse feitio poderia inspirar mais confiança na nossa jurisdição constitucional por parte da sociedade e dos demais poderes e mesmo restaurar entre nós a importância do Poder Legislativo e da Política, com P maiúsculo. Sem falar que não correríamos o risco de uma decisão capaz de abortar definitivamente o debate. Com efeito, eventual negativa do Supremo, considerando que o aborto é inconstitucional, poderia se revestir da natureza de cláusula pétrea, tornando-se imutável.

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[1] WALDRON, Jeremy. The Core of the Case Against Judicial Review. The Yale Law Journal, 115, pp. 1346-1406, 2006.
[2] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 621-622.
[3] Ibid., p. 543.
[4] ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. 10ª edição. Madri: Editorial Trotta, 2011, p. 125.
[5] No prelo, com o título Neoconstitucionalismo e verdade: limites democráticos da jurisdição constitucional. Editora Lumen Juris.
[6] Apud MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 120.

 

 

 

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