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Por que o Pacto de San José da Costa Rica não inviabiliza a descriminalização do aborto

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Veja publicação original: Por que o Pacto de San José da Costa Rica não inviabiliza a descriminalização do aborto

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Por Marcella Fernandes

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“Criminalização do aborto é mantida não para proteger a vida do feto, mas como controle da sexualidade feminina”, afirma o juiz José Henrique Torres.

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“Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.” É o que diz o artigo 4º do Pacto de São José da Costa Rica, também conhecido como Convenção Americana de Direitos Humanos, argumento citado sistematicamente nos debates sobre a descriminalização do aborto.

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Apesar da expressão “desde a concepção”, que poderia ser entendida como uma barreira para o abortamento legal, uma interpretação contextualizada do tratado, defendida por especialistas, vai na direção oposta. “A descriminalização do aborto não é apenas possível, mas uma exigência do sistema de direito humanos e uma exigência constitucional também porque afeta o direito da mulher à saúde”, afirmou ao HuffPost Brasil José Henrique Torres, juiz titular da 1ª Vara do Júri de Campinas (SP) e professor de Direito Penal da PUC (Pontifícia Universidade Católica) na mesma cidade.

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O mesmo entendimento é defendido pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat. Em artigo publicado no Jota durante a tramitação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 181/2015, que inviabiliza o aborto legal no Brasil, a jurista destacou julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o tema, ao analisar um caso de reprodução in vitro de El Salvador em 2012.

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No julgamento que interpretou o artigo 4º, a Corte, criada pelo próprio Pacto de São José, entendeu que o tratado não permite que o embrião seja considerado como pessoa. Já a expressão “em geral” seria incompatível com a proteção do direito a vida de maneira absoluta absoluta. Também foi entendido que “o objeto direto de proteção [do artigo do pacto] é fundamentalmente a mulher grávida”.

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NURPHOTO VIA GETTY IMAGES
Mais de 25 milhões de abortos inseguros, o equivalente a 45% dos procedimentos realizados, ocorreram anualmente entre 2010 e 2014, de acordo com estudo da OMS Organização Mundial da Saúde e do Instituto Guttmacher publicado em 2017.

O texto da Convenção Americana de Direitos Humanos foi debatido na Conferência Internacional dos Estados Americanos, realizada em 1948, em Bogotá, na Colômbia. A versão final foi decidida a fim de contemplar as legislações nacionais dos países signatários, que admitiam basicamente 5 tipos de abortamento legal: para salvar a vida da mãe, na gravidez decorrente de estupro, para proteger a honra da mulher, para prevenir a transmissão de doença hereditária ou contagiosa e por razões econômicas.

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Assinado em 22 de novembro de 1969, na cidade de San José, na Costa Rica, o Pacto foi ratificado pelo Brasil em setembro de 1992. O tratado composto por 81 artigos e é baseado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada em 1948 e um marco na construção do sistema internacional de direitos humanos no pós-guerra.

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É dentro desse conjunto de normas e decisões judiciais que o direito ao aborto deve ser discutido, no entendimento de juristas. “Olham para o Pacto de maneira isolada. Existem inúmeros tratados e manifestações dos órgãos do sistema de controle de direitos humanos, do sistema de monitoramento, do sistema de julgamento que têm afirmado inúmeras e reiteradas vezes que deve ser descriminalizado o abortamento”, afirmou José Henrique Torres.

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É o caso, por exemplo, da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, do Cairo, de 1994. O plano de ação produzido no encontro prevê, no princípio 4, a promoção da equidade de sexos e a garantia de que a mulher controle a própria fecundidade. Os direitos humanos da mulher, das meninas e jovens fazem parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais”, diz o documento.

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No ano seguinte, a Plataforma de Ação de Pequim, por sua vez, reconheceu a necessidade de mudar o foco da mulher para o conceito de gênero e afirmou os direitos das mulheres como direitos humanos. “O aborto inseguro põe em risco a vida de um grande número de mulheres e representa um grave problema de saúde pública, porquanto são as mulheres mais pobres e jovens as que correm os maiores riscos”, diz o tratado.

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“A criminalização do aborto é mantida não para proteger a vida do feto, mas como instrumento de controle da sexualidade feminina, por uma questão ideológica machista, de androcentrismo, de misoginia”, afirma juiz José Henrique Torres.

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De acordo com esse sistema internacional, a interrupção da gravidez deve ser tratada como um problema de saúde pública e não no âmbito criminal, como é no Brasil. “Ainda que se pense na questão da vida, ela tem de ser feita fora o sistema penal porque a criminalização afastas as mulheres e inviabiliza a assistência e com isso as mulheres estão morrendo aos milhares, pelo mundo todo, pela prática do aborto inseguro e ele é inseguro porque é feito na clandestinidade e ele é feito na clandestinidade porque é criminalizado”, destaca o especialista em direito penal.

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Mais de 25 milhões de abortos inseguros, o equivalente a 45% dos procedimentos realizados, ocorreram anualmente entre 2010 e 2014, de acordo com estudo da OMS (Organização Mundial da Saúde) e do Instituto Guttmacher publicado em 2017.

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Quem pode abortar no Brasil hoje

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Hoje, o Código Penal Brasileiro, em vigor desde 1940, prevê 3 tipos de criminalização do aborto. Quando é provocado pela própria gestante, é punido com 1 a 3 anos de prisão. A pena varia de 3 a 10 anos para quem interromper a gravidez alheia sem consentimento e de 1 a 4 anos quando o crime ocorre com consentimento da mulher. Há ainda agravantes, como a gestante ser menor de 14 anos.

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O Código permite a interrupção da gravidez quando ela é resultado de estupro ou em caso de risco da mulher. O aborto também é permitido quando o feto é anencéfalo, conforme decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de 2012.

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Outra possibilidade de descriminalização está em debate. Está em tramitação no tribunal a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 442, que pede a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação. As audiências públicas sobre o tema serão realizadas em 3 e 6 de agosto, por determinação da relatora, ministra Rosa Weber.

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Está em tramitação no tribunal a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 442, que pede a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação. As audiências públicas sobre o tema serão realizadas em 3 e 6 de agosto, por determinação da relatora, ministra Rosa Weber.

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A legislação brasileira não determina quando começa a vida. O artigo 5º da Constituição prevê que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, mas não faz referência à concepção.

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Já o Código Civil, no artigo 2º, estabelece que “a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. A norma é frequentemente usada para resolução de disputas patrimoniais.

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A Convenção Americana de Direitos Humanos, por sua vez, tem caráter supralegal, isto é, tem um peso jurídico maior do que a legislação ordinária brasileira, que está fora do texto constitucional. Por esses movitovos, na interpretação de José Henrique Torres, o aborto não é legalizado no Brasil por motivações políticas.

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A criminalização do aborto é mantida não para proteger a vida do feto, mas como instrumento de controle da sexualidade feminina, por uma questão ideológica machista, de androcentrismo, de misoginia.José Henrique Torres

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O professor cita ainda princípios constitucionais que sustentam a legalização. “Você tem o princípio constitucional da idoneidade, que existe que a criminalização de uma conduta seja útil, seja eficaz. Isso não acontece no Brasil. Um outro princípio exige que a criminalização não pode gerar mais danos do que o próprio problema que se quer enfrentar e as consequências danosas do abortamento, como morte de mulheres e sequelas, são muito maiores do que ele próprio (…) também só se pode criminalizar uma conduta, se não houver outra alternativa, com base no princípio da intervenção mínima”, afirmou Torres.

 

 

 

 

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