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PESSOAS TRANS: A PEDRA NO SAPATO DO DISCURSO PSI E JURÍDICO E A QUESTÃO DO LAUDO

Saiu no site TRANS ADVOCATE BRASIL:

 

Veja publicação original: PESSOAS TRANS: A PEDRA NO SAPATO DO DISCURSO PSI E JURÍDICO E A QUESTÃO DO LAUDO

 

 

Vou precisar escrever esse texto, mais como um desabafo. Nós, enquanto movimento de pessoas trans, falamos como é um absurdo termos nossa cidadania vinculada a apresentação de laudos médicos e psiquiátricos. Apontamos como isso é violento e arbitrário, já que o direito jurídico ao próprio nome não deveria estar vinculado a apresentação de laudos.

 

 

E aliás, quando falamos de laudo, não é qualquer laudo, é um laudo pretensamente “confiável”, que passou pelo crivo da produção de uma verdade sobre o sujeito trans. Os dois anos de exigência de acompanhamento é uma das formas como essa verdade sobre a subjetividade trans emerge.

 

 

Os profissionais psis acreditam que todo este controle burocrático de aparição desta verdade da subjetividade trans regulamentada por normas seria do campo da ética.

 

 

Confundem burocracia e regulamentos com a ética. Acham que se existe uma exigência para uma produção de verdade sobre o laudo, e uma das exigências é o acompanhamento de 2 anos, eles depreendem automaticamente que se trata de algo fruto de uma ética, de um estudo condizente e neutro sobre as subjetividades trans. Se dizem que é preciso 2 anos para só então uma pessoa trans ser laudada como trans pelo discurso da verdade é porque é correto, pois ético, pois só poderia ser fruto da ética.

 

 

Mas é possível vivermos em stand-by durante 2 anos? É uma pergunta retórica esta que eu fiz. Para as pessoas trans, demandamos acesso a direitos para ontem, não para daqui há 2 anos.

 

 

O que psicólogos cisgêneros apreendem da nossa denúncia, desta realidade de desumanização do laudo, exclusão de direitos de pessoas trans? Até que ponto esses profissionais psis podem ser empáticos? Até onde a burocracia aperta. Ou melhor, o desejo por burocracia, que é o mesmo desejo por verdade, o mesmo desejo por separar o “joio do trigo”, ou seja, separar quem é trans de “verdade” e quem é de “mentira”. Até quando eles enxergarem qualquer ameaça ao exercício do seus cargos, até onde eles enxergarem uma instabilidade para o exercício destes cargos. Este é o limite.

 

 

Até onde a burocracia sem sentido aperta, a mesma burocracia desumanizante para pessoas trans. A contradição entre esse desejo por burocracia e a cidadania trans não é resolvida.

 

 

Eles estão muito mais interessados em não terem seus registros “caçados” (mesmo que de fato esse medo seja bastante infundado), em não sofrerem qualquer tipo de problema burocrático, do que se manifestarem contra esta realidade transfóbica, do que exercerem empatia conosco, do que questionarem o próprio estatuto da verdade que um laudo atestaria frente ao jurídico.

 

 

Para alguns psicólogos cisgêneros, é mais importante seguir regras burocráticas de 2 anos para realizar um laudo do que criticarem essa exigência, por exemplo. O interesse de classe, e classe aqui como o interesse que se manifesta pelo respeito a uma burocracia (sem sentido em si mesma) que regula a atividade de uma classe profissional. Esta burocracia iria regular o exercício de atividade de forma a evitar os percalços. Mas as pessoas trans são a pedra no caminho, a pedra no sapato dos psis e dos juízes.

 

 

Seguir a burocracia, por apenas segui-la, para se eximir de qualquer enfado burocrático, se torna mais importante do que a própria vida concreta de pessoas trans. O desejo desta burocracia no campo psi vêm do campo jurídico e este desejo por veridição não é resolvido sem a desconsideração do reconhecimento da humanidade das pessoas trans.

 

 

Pessoas cis veem questões de pessoas trans como algo perigoso, sempre como uma ameaça. Pessoas trans são uma ameaça ao exercício da profissão de psicologia, porque demandamos esses laudos para podermos sobreviver; insistimos em viver e isso atrapalha a estrutura burocrática entre os campos do jurídico e do psi; e esses psicólogos se sentem incomodados com essa demanda, o funcionamento destes dois campos que se delimitam reciprocamente em suas atravessamentos produzem furos e incompreensões mútuas; os psis se sentem incomodados em terem que assumir essa posição sobre-determinada pela demanda jurídica, e o discurso jurídico se sente incomodado em funcionar sem apelar para o saber psi. Nós pessoas trans ocupamos o lugar do furo. Seria muito mais fácil para os psis que pessoas trans simplesmente não existissem, seria uma dor de cabeça a menos para eles. Seria mais fácil também para os juízes.

 

 

Nós pessoas trans somos as pessoas mais enfadonhas em exigirmos um documento para esses profissionais para que nós possamos sermos cidadãos deste país – mesmo que de forma precária. Nós somos um enfadonho para a lei, para o jurídico, para profissionais, para pesquisadores, para médicos e para psicológicos. Nós incomodamos esses profissionais por existirmos em sociedade, nós incomodamos com nossas demandas por existência e reconhecimento.

 

 

Incomodamos mais ainda quando denunciamos este incomodo, quando denunciamos as relações de poder, quando ousamos tensionar essas relações, quando ousamos questionar as verdades que se produzem no discurso jurídico e psi sobre nossas subjetividades.

 

 

O jurídico demanda a apresentação de “provas” de autenticidade, de laudos que atestem uma transexualidade verdadeira. Não basta qualquer parecer técnico baseado no respeito por direitos humanos e a auto determinação do gênero, isso é ainda pouco para o jurídico, o jurídico tem fome da verdade verdadeira sobre a transexualidade patológica.

 

 

Os profissionais psis se sentem ameaçados a ocuparem essa posição, justamente por muitas vezes (pra não dizer todas) se depararem com sujeitos trans que existem concretamente, e não uma abstração de um sujeito ideal, portador de uma transexualidade verdadeira, de uma patologia cristalina.

 

 

Os sujeitos trans reais são imprecisos, duvidosos. Não suficientemente patológicos, talvez. O incomodo do profissional psi emerge deste sujeito trans ambíguo, pois a confecção do laudo no seu dispositivo de verdade se encontra ameaçado. Enquanto isso, enquanto toda essa dinâmica que regula subjetividades se estrutura e se concretiza institucionalmente, são as pessoas trans que irão continuar vivendo na sub-cidadania. São as pessoas trans mais excluídas que irão continuar excluídas do acesso a direitos, a trabalho, educação, saúde.

 

 

Quando é que vamos ter a lei de identidade de gênero aprovada?
Ao mesmo tempo em que esses profissionais se sentem incomodados com pessoas trans, eles se sentem muito a vontade no exercício deste poder, no exercício deste poder que determina a verdade sobre a subjetividade trans. O que incomoda esses profissionais de fato não é o poder que eles detêm sobre nossas vidas, são as vozes trans que denunciam essas relações de poder, que denunciam a noção de uma transexualidade “falsa”.

 

 

Nós pessoas trans nunca nos foi dada a prerrogativa de “não existir”. Nós resistimos.

***

(Questões levantadas por Amiel)

 

 

– Se há um protocolo construido também há uma possibilidade de subverte-lo, manipular a possibilidade de ter um tempo é para verificar a tal “identidade verdadeira trans” não há aí a possibilidade de se fazer uma luta pela cidadania trans, reconhecendo que identidades não são passíveis de papeis e burocracia já que todos nascem iguais perante a lei segundo a CF?
– A invisibilidade trans e a sujeição protocolar para sermos “aceitos” em sociedade, quais preços atuais e no futuro?

– Disforia como papel central da definição identidade trans pela psicologia, se todos seres humanos serão disfóricos com seus corpos em algum momento da vida, não seriam todos trans ou o tempo conta entende?

 

 

***
Ainda sobre os tais 2 anos:

 

 

Uma coisa que jamais vou entender: pessoa trans defendendo compulsoriedade de terapia de 2 anos pra emissão de laudo para que pessoas trans possam retificar seus documentos. Que os profissionais psi usem desculpas completamente estapafúrdias e cínicas como “você precisa desse tempo pra ter certeza de sua decisão, pra ter mais auto conhecimento” é até esperado pela tentativa de justificar a posição de poder que ocupam, o que é surpreendente mesmo são pessoas trans caindo feito patinhos por essa retórica, comprando acriticamente esse discurso.

 

 

Quem pode dizer que todas as pessoas trans precisariam desses dois anos? Todas as pessoas trans são iguais, as tratamos como se fossem um rebanho bovino? Ora, se estamos falando sobre psicoterapia, se estamos falando sobre conseguir mais auto conhecimento, cuidado de si, porque diabos eu preciso me submeter compulsoriamente a uma situação em que eu vou ter que conviver, por mais de dois anos, com um nome e gênero em meus documentos que não condizem com minha identidade? O que esse tempo de espera pode me trazer para além do prolongamento do sofrimento e de situações de constrangimento e violência? Porque as pessoas acham que pra eu ter mais “certeza” na minha decisão eu precisaria continuar sendo expostas às situações de constrangimento que levam a mais sofrimento psíquico? Como medidas compulsórias e arbitrárias são vistas como se representassem uma preocupação com o bem estar de pessoas trans?

 

 

Aliás, já começa errado tudo: exigência de laudo para pessoa trans ter “certeza” de sua decisão, e vai piorando ainda mais quando se exige um tempo mínimo de dois anos.

 

 

O correto seria nem existir esse tipo de exigência, o correto pra início de conversa seria que profissionais psi, psicólogos, entendessem que o seu trabalho não deveria ser exigido para que pessoas trans tenham acesso a direitos jurídicos sobre seus próprios nomes. Então nem venham com esse discurso hipócrita sobre “ah que lindo, você precisa de tempo pra conhecer a si mesmo”. NÃO, UMA OVA. Vocês estão sendo simplesmente cínicos ao afirmarem esse tipo de coisa se estamos falando de terapias compulsórias de no mínimo dois anos que irão arrastar a situação de sub-cidadania de pessoa trans. Não ROMANTIZEM a nossa opressão, não romantizem o poder.

 

 

Pessoas trans podem precisar de tempo sim, o tempo que precisarem. Mas isso não é universal, isso não pode ser imposto, como se todas as pessoas trans fossem iguais, isso deveria ser dialogado com cada pessoa.

 

 

Aliás, conheço um monte de profissionais do setor privado que emitem laudos com pouquíssimas sessões, sendo tais laudos aceitos pelos juízes. Então essa compulsoriedade de 2 anos não é sobre preocupação com bem estar de pessoas trans, uma ova, falem a verdade: se trata tão somente de um burocracia do SUS que é imposta de cima pra baixo, uma burocracia no seu sentido mais forte da palavra, completamente sem sentido, arbitrária.

 

 

É preciso discutir a importância de que profissionais psi do SUS passem a emitir esses laudos sem exigência de 2 anos, pois nem toda pessoa trans pode ter acesso aos serviços privados.

 

 

 

 

 

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