HOME

Home

Geisa Santos: A mulher que tomou posse de seu lugar e peitou o universo da tecnologia

Saiu no site HUFFPOST:

 

Veja publicação original: Geisa Santos: A mulher que tomou posse de seu lugar e peitou o universo da tecnologia

.

Depois de batalhar para conseguir ter voz em uma área dominado por homens, ela quer ensinar programação para outras meninas e mulheres de diferentes idades.

.

Nos seus 37 anos de vida, Geisa Santos já passou pelo Nordeste de Amaralina, morou na Chapada do Rio Vermelho, e agora vive no Vale das Pedrinhas. Todas elas comunidades periféricas de Salvador. E ela faz questão que essa informação sobre ela seja destacada: “Fale o nome de todos os lugares porque eu quero que as meninas que moram lá vejam que elas também podem ir além”.

.

Fez faculdade de publicidade e propaganda, pós-graduação em tecnologia e agora é mestranda em Comunicação na Universidade Federal da Bahia. Dentro da bolsa, carrega uma caixinha branca decorada com chita. No pescoço, um pen-drive chega a passar despercebido entre os outros pingentes. Os dois objetos, quando analisados um pouquinho mais de perto, entregam a profissão que ela escolheu para a vida: programadora.

.

A caixinha, chamada por ela de caixa-pirata, é uma roteadora – sim, no feminino mesmo – que carrega uma sistema inteiro de computador prontinho para ser usado. No pendrive, há arquivos e mais arquivos sobre como se proteger em ambientes digitais e otras cosita más. Por mais incrível que pareça, ambos objetos são ferramentas de guerrilha feminista. Mas como uma menina da periferia virou essa ciberativista do direito das mulheres e do livre acesso? Bom, ela aprendeu muito em casa.

.

Meus pais me ensinaram a não perder nenhuma oportunidade, porque, no nosso caso, muito possivelmente a gente não teria outra chance. Tudo tem que ser conquistado e, por menor que seja essa conquista, dê valor.

JUH ALMEIDA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

.

Os pais vieram do interior da Bahia. Ele, de Varzedo, e ela de Itacaré. Os dois se conheceram já na capital baiana, onde partilhavam do mesmo objetivo: encontrar melhores perspectivas de vida. Peço licença para falar um pouquinho sobre Dona Inis. Sem ciúmes, seu Guilherme, mas em conversa com o Huffpost Brasil, os olhos de Geisa brilham de jeito especial durante fala sobre sua mãe.

.

Inis fugiu de casa aos 11 anos porque o pai queria casá-la com um homem de 60 anos, em troca de alguns favores. Um pouco antes disso, foi tirada da escola logo depois de aprender a escrever o nome – afinal, para uma mulher, isso bastava. Morando em Salvador, enquanto trabalhava como babá para uma tradicional família soteropolitana, conseguiu terminar o ensino médio. Aos trancos e barrancos, conseguiu colocar as duas filhas na escola particular, pagar aulas de inglês e suprir os constantes pedidos de livros e gibis que surgiam da dupla.

.

“Eu perguntava tanto sobre tudo, que minha mãe comprou aquelas Barsas e me deu porque não aguentava mais responder (risos). Ela me deu a enciclopédia e falou: procure. Quando a questão de conhecimento, ela nunca me negou nada”, conta. Foi vendo a força da mãe dentro de casa, sendo repassada para ela e para a irmã, que aprendeu, sem discutir vertente ou nada do tipo, o que entende como feminismo.

.

Quando me perguntam, em rodas feministas, quem é a minha referência, eu digo: minha mãe. Não tem Simone de Beauvoir, não tem ninguém. É ela.

JUH ALMEIDA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
Ela agarrou a chance de mergulhar num ambiente ainda desconhecido nos anos 90: a computação.

.

“Eu já conhecia o feminismo, mas sem dar esse nome. Aqui na quebrada, todas as mulheres são feministas: a baiana de acarajé é feminista, as senhoras que acordam quatro e meia da manhã para vender mingau na rua. Elas já eram feministas há muito tempo. Quando me perguntam, em rodas feministas, quem é a minha referência, eu digo: minha mãe. Não tem Simone de Beauvoir, não tem ninguém. É ela”.

.

Não se encaixava na escola, onde dividia sala com filhos de vereadores, desembargadores e a nata da classe média baiana. Mas também não se deixava intimidar: aproveitava tudo e mais um pouco que o ensino de qualidade podia lhe proporcionar. Fez todos os cursos e esportes extracurriculares, não perdia uma aula sequer e comemorava junto a família qualquer vitória acadêmica, por mais singela que ela pudesse parecer. “Meus pais me ensinaram a não perder nenhuma oportunidade, porque, no nosso caso, muito possivelmente a gente não teria outra chance”.

.

Foi com esse espírito, que agarrou a chance de mergulhar num ambiente ainda desconhecido nos anos 90: a computação. Computador em casa era uma realidade distante para muita gente à época, imagine então quais a chance de uma menina de periferia possuir o seu próprio aparelho. Por conta disso, ficava de olhos e ouvido atentos nas aulas do colégio e, no curso de inglês, chegava antes e saía depois de todo mundo para aproveitar um PC que era disponibilizado para os alunos.

.

Em uma dessas aventuras no mundo virtual, percebeu que, no computador ao lado, alguns alunos mais abastados conseguiam mudar cores de páginas da web, as fontes das letras e até colocar imagens piscantes no cursor do mouse – ou seja: o combo formador da estética da Internet nos anos 2000. Os meninos carregavam consigo uma apostila enorme com instruções de como dominar o PHP. Aos analfabetos digitais, essa é uma linguagem usada para gerar conteúdo dinâmico na World Wide Web e foi um dos primeiros códigos passíveis de inserção em documentos HTML.

.

Eu já conhecia o feminismo, mas sem dar esse nome. Aqui na quebrada, todas as mulheres são feministas: a baiana de acarajé é feminista, as senhoras que acordam quatro e meia da manhã para vender mingau na rua também. E elas já eram feministas há muito tempo.

JUH ALMEIDA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
O que a fez ir longe foi a curiosidade por um universo majoritariamente ocupado por homens.

.

Pediu emprestado, aprendeu por conta própria e não parou mais – com a limitação de só ter o computador alheio, é claro. E a curiosidade pelo funcionamento das coisas ou pelo digital não parou por aí: incentivada pelo pai, aprendeu a fazer manutenção na televisão, no rádio, a consertar bicicleta, a desmontar e montar o telefone… Só não aprendeu a trocar a resistência do chuveiro, diz ela, “porque era muito alto”.

.

Além da parte “burocrática”, também se encantou pela vertente eletrônica unanimemente divertida. Quando visitava os amiguinhos da escola, passava horas e horas jogando videogames nos consoles que eles dispunham e, quando podia, visitava ao lado dos primos alguns arcades.

.

Tudo isso junto e misturado fez com que ela se perguntasse na hora de fazer o vestibular: “Com qual curso eu posso trabalhar com isso, meu Deus?”. Geisa conta que mandou até uma carta para a Grow, marca de jogos, perguntando, literalmente, “qual faculdade eu preciso fazer para trabalhar com vocês?”. “Eles nunca responderam”, diverte-se. Chegou também a procurar um professor do curso de Processamento de Dados, mas por ele foi humilhada: “Ele me disse que, como eu era mulher, eu não conseguiria calcular, não conseguiria acompanhar o curso”.

.

Decidiu, então, que se não podia estar por trás da criação dos jogos, iria pelo menos fazer as propagandas deles. “Fui atrás da faculdade de publicidade porque lá, pelo menos, eu iria aprender a mexer em coisas gráficas, a desenhar. E eu acabei aprendendo a mexer em Corel, Photoshop.. Sempre a única menina no meio de um monte de menino”.

.

Eu só via homem programando e decidi começar a estudar para ensinar outras meninas. Falei: aqui é meu lugar e ninguém vai me tirar. E, desde então, eu enfrento os caras na lata.

JUH ALMEIDA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
Obstinada, Geisa decidiu que se não podia estar por trás da criação dos jogos, iria pelo menos fazer as propagandas deles.

.

Mesmo sem se sentir encaixada no âmbito das agências, começou a trabalhar nelas e em fazendo alguns freelas por conta própria para se sustentar. Só que, mesmo nessas empresas, sempre acabava com um pézinho no departamento de tecnologia, dando um pitaco aqui e ali. Nesses lugares, era constantemente testada pelos outros funcionários homens, tendo sempre que se provar. “Uma vez eu contei para meu chefe e ele falou: ‘Me chame quando isso acontecer’. E eu rebate: Não, pode deixar que eu respondo”.

.

Ainda nesse meio, presenciou um episódio de sexismo atrelado com o ambiente virtual – o qual prefere não detalhar – e decidiu que teria que fazer algo a respeito. Na mesma época, como que por coincidência, conheceu o Luluzinha Camp, um coletivo virtual de mulheres, para mulheres, onde se conversava “sobre tudo o que você puder imaginar” e, claro, nessa miscelânea de assuntos, estava incluído também o mundo digital nas suas mais diversas faces.

.

“Quando começaram a me chamar de feminista e feminista raivosa – porque nessa época ainda não tinha o termo feminazi -, eu comecei a pesquisar a respeito”. Pesquisou e falou tanto sobre que foi convidada a organizar uma edição, em Salvador, do Rails Girls, um workshop de programação voltado para mulheres cis e trans, no qual se ensinava a desenvolver softwares utilizando o servidor Ruby on Rails.

.

“Eu fiquei olhando todas aquelas mulheres – nessa época eu não conhecia, pessoalmente, outras meninas programadoras – e decidi que eu iria virar hacker. Antes eu só via homem programando e decidi começar a estudar para ensinar outras meninas. Falei: aqui é o meu lugar e ninguém vai me tirar. E desde então eu enfrento os caras na lata”, conta.

.

Eu botei na cabeça que eu seria a minha referência de mulher na tecnologia, então eu comecei a aprender tudo sozinha. Já tinha internet, já tinha computador em casa. Então comecei a ler muito sobre e aí montei o PyLadies.

JUH ALMEIDA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
A empresa de Geisa tem o intuito de ensinar programação para meninas e mulheres de diferentes idades.

.

Depois do empurrãozinho, começou a estudar a respeito, e decidiu montar o PyLadies Salvador, uma unidade local da comunidade internacional PyLadies, que tem o intuito de ensinar programação para meninas e mulheres de diferentes idades. O grupo realiza diversos eventos e workshops nos quais defende a participação de mulheres nas áreas de ciências exatas, e luta fortemente contra qualquer tipo de preconceito ou ideia divergente à isso.

.

Virou uma bola de neve. Entrou no RaulHC, grupo soteropolitano de aficionados em compartilhamento de tecnologia, aprendizado, diversão e cultura de forma colaborativa e indiscriminada, que busca fornecer e catalisar infra estruturas autônomas e descentralizadas que viabilizem esses objetivos. E, mais recentemente, inspirado no MariaLab – com o qual também colabora -, montou seu próprio hackerspace, o Periféricas.

.

“Em muitos hackerspace você não se sente bem-vinda e acolhida, é muito um clubinho de homens – e eles não são muito abertos a outras pessoas, principalmente aquelas que têm algo fora do padrão”, explica. No seu coletivo – cujo nome é propositalmente sem qualquer estrangeirismo -, se dedica à democratização da Educação e inclusão sócio-digital, além de promover a diversidade e acessibilidade para mulheres cis e trans, e também para pessoas da periferia, lugar de onde veio, e tem muito orgulho de ter vindo.

.

Atualmente, se algum homem vier perguntando sobre tecnologia como se duvidasse da capacidade e conhecimento de Geisa, ela é sucinta: “Hoje, se alguém vier falar isso comigo, eu sou capaz de dar uma voadora”.

.

.

Ficha Técnica #TodoDiaDelas

Texto: Clara Rellstab

Imagem: Juh Almeida

Edição: Andréa Martinelli

Figurino: C&A

Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC

 

 

 

 

.

.

.

.

.

.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no linkedin
LinkedIn

HOME