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‘Garotas Mortas’: O machismo e a filosofia do garfo

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Veja publicação original: ‘Garotas Mortas’: O machismo e a filosofia do garfo

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Em ‘Garotas Mortas’, a argentina Selva Almada aborda a violência machista sem demagogia

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O próprio título já é uma declaração contundente de intenções narrativas: seco, espartano, antipoético, quase voluntariamente feísta. Descrição cartorial e direta: Garotas Mortas (Todavia Livros, 2018). Em seu romance anterior, Ladrilleros (tijoleiros), de 2013, Selva Almada já mostrava essa propensão ao olhar de cirurgião desapegado, de observador que procura separar as emoções porque sabe que o que está contando não precisa de adornos nem subjetividades.

Uma nota extraliterária: não é verdade que a literatura se deva só a si mesma. Deve-se à realidade, ao mundo que retrata, aos conflitos com os quais convive. À dor humana e à dor histórica. E, nesse sentido, é imprescindível que a literatura do século XXI aborde mais prodigamente o tema do machismo, um dos assuntos medievais que perduram com uma inquietante estabilidade em nossas sociedades hipermodernas. Garotas Mortas faz isso sem compromissos e sem pretextos. E só por isso já vale à pena.

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Mas Garotas Mortas, além de útil, é literatura em estado de graça. Selva Almada compõe um livro breve, cheio de meandros, não se deixando vencer por nenhuma das tentações retóricas e demagógicas possíveis. Parte de três histórias reais, de três casos não resolvidos de meninas assassinadas ou desaparecidas muitos anos atrás. Andrea, que foi encontrada morta em sua cama, apunhalada. María Luisa, cujo cadáver foi achado abandonado no campo, com o rosto bicado por pássaros. E Sarita, que desapareceu sem que jamais saibamos se chegou a morrer ou se teve outro destino. A autora também está presente no interior do relato desde o primeiro instante: recorda a repercussão que o assassinato de Andrea teve quando era só uma criança, e recorre a esses fios de sua própria biografia para conduzir a história.

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Que ninguém espere uma crônica policial, embora haja crônica policial. Que ninguém espere um thriller, ainda que exista mistério e suspense. O verdadeiro noir de Garotas Mortas está no coração das mulheres e dos homens que as maltratam. E está, sobretudo, na paisagem social dessa Argentina interior, rural e sórdida onde a felicidade não parece ser uma opção razoável para as mulheres. Almada desenha personagens – as mortas e as que ainda vivem – subjugadas, encerradas numa vida opressiva sem ventilação. Em Garotas Mortas, o destino tem aroma de tragédia grega: imutável, irreversível, fatal.

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Almada quer devolver a responsabilidade a quem lhe cabe. “O que precisamos é reconstruir como o mundo olhava para elas. Se conseguirmos saber como eram olhadas, saberemos qual era o olhar elas tinham sobre o mundo.” Ou seja: a constatação de que é impossível construir a liberdade num espaço dominado pelo machismo mais feroz. Ou, o que é pior e mais desolador: que é impossível, inclusive, conceber que coisa é a liberdade. Visitar um homem que oferece ajuda econômica em troca – o livro nos conta – é uma forma de prostituição normal e consentida nas cidades do interior. E às vezes esse posto é herdado: as filhas ou sobrinhas que acompanham a mãe em suas visitas a acabam substituindo quando ela deixa de ser atraente por causa da idade. Nesse contexto, o livre arbítrio é só um conceito metafísico.

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Selva Almada conta as histórias de Andrea, María Luisa e Sarita, mas, seguindo as pistas delas, acrescenta inúmeras histórias semelhantes de outras mulheres assassinadas, maltratadas e humilhadas. São clarões narrativos encadeados numa aparente desordem, mas que deixam bem sedimentada uma ideia capital: nesse universo, os casos das três garotas protagonistas não são exceções exóticas, e sim a norma social. No final, não recordamos bem a história de nenhuma delas porque o que menos importa são suas histórias particulares. O quebra-cabeça fica voluntariamente incompleto e voluntariamente enredado. Confundimos os episódios, os fatos e os rostos, que foram embaralhados por Almada como os naipes desta vidente, a Senhora, que é empregada no livro como brilhante recurso narrativo. Todas as meninas são a mesma menina.

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A brutalidade não pode ser contada com pieguice, escrúpulos excessivos ou ocultamentos: deve ser contada com brutalidade. Selva Almada quer ferir o leitor, e faz isso sem exuberâncias nem desejo de provocar estardalhaço. O encarniçamento, na verdade, não é dela. Está nas vidas que nos mostra.

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Em Garotas Mortas, a autora inclui uma lembrança familiar que talvez sirva para dar sustento à filosofia do livro. Seus pais, que se casaram muito jovens, um dia tiveram um bate-boca banal, infantil. A discussão subiu de tom, e o pai levantou a mão como se fosse bater na esposa. A mãe então segurou um garfo que estava sobre a mesa e o cravou no braço do marido. No resto da vida conjugal, ele nunca mais repetiu um gesto violento.

 

 

 

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