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Famílias devastadas pelo feminicídio tentam reconstruir a vida e superar traumas

Saiu no site G1:

 

Veja publicação original: Famílias devastadas pelo feminicídio tentam reconstruir a vida e superar traumas

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Por Carlos Dias

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Parentes de vítimas da região de Sorocaba (SP) passam por tratamento psicológico, trocam móveis e tentam ‘blindar’ inocentes. Segundo a ONU, uma em cada três mulheres é ou será vítima de violência no mundo.

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“Ela só morreu por causa do coração bom que tinha.” O desabafo de Leonardo da Silva Bezerra, de 23 anos, morador de Salto (SP), faz referência à manhã do dia 17 de maio, quando viu a mãe se tornar mais um número na estatística do feminicídio. Ela foi morta pelas mãos do ex-companheiro, dentro de casa – o casal estava em processo de separação.

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Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), uma em cada três mulheres é ou será vítima de violência de gênero no mundo.

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Desde março de 2015, a legislação brasileira prevê o crime de feminicídio para assassinatos que envolvam “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.

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Antes da lei, não havia punição específica. O crime era tratado de forma “genérica” e a pena poderia variar entre 6 e 20 anos. Atualmente, a legislação reconhece a infração por razões da condição do gênero feminino e a pena vai de 12 a 30 anos de reclusão.

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Apesar da lei ser um avanço na luta contra a violência, os casos de feminicídio continuam se repetindo, com uma frequência cada vez maior. E as famílias marcadas pela tragédia precisam aprender a conviver com a saudade e com o medo de que o crime possa acontecer novamente com uma pessoa querida, apenas pelo fato dela ser uma mulher.

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Para mostrar as marcas deixadas pelo feminicídio, o G1 conversou com parentes de três vítimas desse crime: o jovem Leonardo, cujo relato sobre a mãe, Ana Lúcia Silva, abre esta reportagem; a irmã de Juliana Jovino, localizada morta no Natal de 2017, em uma represa; e o irmão de Daniele Candido, espancada pelo marido e achada morta pelos irmãos embaixo do sofá.

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Fotos e cicatrizes

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Leonardo é filho da vítima que foi morta pelo marido em Salto (Foto: Carlos Dias/G1)

Leonardo é filho da vítima que foi morta pelo marido em Salto (Foto: Carlos Dias/G1)

Leonardo e a mãe dormiam na manhã do dia 17 maio quando foram pegos de surpresa pelo agressor armado com um faca. Segundo Leonardo, o ex-padrasto não aceitava o fim do relacionamento e era usuário de drogas.

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Marcos Laureano esfaqueou o jovem várias vezes no pescoço. Em seguida, atacou a ex-companheira, Ana Lúcia Silva. Mesmo gravemente ferido, o rapaz conseguiu fugir para pedir socorro enquanto a mãe segurava o criminoso.

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Uma câmera de segurança flagrou o momento em que ele saiu coberto de sangue na rua e vizinhos chamaram o resgate. A mulher de 49 anos não resistiu ao ataque.

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“Foi tudo muito rápido. Mas eu só sobrevivi porque minha mãe o impediu de me matar. Acordei às 7h e às 7h30 já estava sendo socorrido pela ambulância.”

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Leonardo, de Salto, guardou as fotos com a mãe (Foto: Carlos Dias/G1)Leonardo, de Salto, guardou as fotos com a mãe (Foto: Carlos Dias/G1)

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Hoje o sobrevivente mora com o pai e passa diariamente por fisioterapia por conta dos golpes de facas terem acertado partes do pescoço.

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“Hoje carrego as cicatrizes. Se eu prendo o cabelo, elas aparecem. Tenho que aprender a lidar, porque esquecer eu não vou”, diz o jovem ao G1, revendo fotos da mãe.

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Segundo o filho, Lúcia era uma pessoa doce com a família e conheceu o agressor quando ainda eram vizinhos. O relacionamento durou seis anos com histórico turbulento de crises do ex-padrasto. Marcos tentou suicídio após o crime, mas sobreviveu e está preso.

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‘Gostava de viver’

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Filha de Juliana Jovino é cuidada pelos irmãos e pela mãe em Sorocaba (Foto: Carlos Dias/G1)Filha de Juliana Jovino é cuidada pelos irmãos e pela mãe em Sorocaba (Foto: Carlos Dias/G1)

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A morte de Juliana Jovino aos 24 anos causou comoção no Natal de 2017. Antes de a jovem ter o corpo localizado na represa de Votorantim, a filha dela foi deixada sozinha, abraçada a uma árvore, em uma rua de Sorocaba (SP).

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Na época, a vítima tinha conhecido Celso Rodrigues Nunes, de 33 anos, pelas redes sociais e marcado um encontro perto da casa dela, no bairro Nova Esperança. Segundo o relato do criminoso à Polícia Civil, os dois teriam usado drogas entre os dias 23 e 24 de dezembro depois de irem a um churrasco de uma amiga.

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Antes de seguirem para a casa dele, em Votorantim, Juliana foi em casa e pegou a filha. Logo depois começou a passar mal e desmaiou, por conta do excesso de drogas. Desesperado, o rapaz jogou a jovem em uma represa. Em seguida, levou a criança até Sorocaba e a abandonou. Laudo do IML concluiu que a jovem morreu por afogamento, e não por overdose.

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Para tentar “blindar” a criança de 3 anos – que teria presenciado toda a movimentação do criminoso – e amenizar a falta da mãe, a família optou por mudar os móveis da casa, pintá-la e explicar que “a mãe está no céu”.

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“Nós quatro [irmãs e avó] cuidamos dela [a criança] para que seja uma pessoa boa no futuro. Fizemos a mudança não para apagar minha irmã, mas para amenizar a dor”, conta Vera Lúcia Jovino, de 30 anos.

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Com os olhos cheios de lágrima e voz trêmula, Vera se emociona ao lembrar de Juliana e a luta diária contra o vazio em casa. As irmãs da vítima e a menina passam por consultas no psicólogo.

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“Era uma pessoa que gostava de viver. Vivia um dia de cada vez e bem vivido. Tento pensar que ela está melhor que a gente, mas é difícil.”

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Celso Rodrigues Nunes foi preso pela Polícia Civil de Votorantim e deve ir a júri popular.

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A vida por um celular

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Irmão de Daniele guarda vídeos da vítima como lembrança (Foto: Carlos Dias/G1)Irmão de Daniele guarda vídeos da vítima como lembrança (Foto: Carlos Dias/G1)

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Dentre os três casos, o mais recente é o da estudante Daniele Candido, morta pelo marido aos 21 anos. A vítima foi agredida no dia 11 de junho e deixada sem vida debaixo do sofá de casa, no bairro Itapeva, em Votorantim.

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Segundo o irmão, Danilo Candido, de 26 anos, no dia do crime toda a família se encontrou e falou com Daniele pela última vez quando ela tinha acabado de chegar da igreja. Ela não atendeu às ligações nos dias seguintes.

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Desconfiado, ele voltou ao imóvel com a outra irmã, pulou a janela e achou marcas de sangue embaixo do sofá da sala.

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Uma denúncia anônima apontou a localização do suspeito, que foi preso em Porto Feliz (SP). A família da vítima afirma que o rapaz é usuário de drogas e poderia estar devendo ao tráfico. Uma briga teria começado quando ele tentou pegar o celular dela para quitar a suposta dívida.

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“Foi na semana que ela ia fazer aniversário. Pensar que ela está no céu é o que alivia, porque uma perda dessa machuca muito.”

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A vítima e o criminoso eram casados há 13 anos e se conheceram na frente da igreja, em Porto Feliz. Na época, começaram a morar juntos e logo surgiram as primeiras desavenças e crises de ciúme dele.

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“Foi tipo o que dizem ser ‘amor à primeira vista’. Ele até parecia ser gente boa, mas o problema era também a cocaína. Eu só queria saber o motivo, o ‘porquê’ de tirar a vida dela”, desabafa.

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Sentimento de posse

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Ao G1, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informou que foram instaurados, em 2016, 1.287 processos envolvendo feminicídio em 2016, no Brasil. No ano seguinte esse número mais que dobrou: foram 2.643 novos processos.

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Já o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou na quinta-feira (9) os números de mulheres vítimas de homicídio no ano passado: 4.539. Deste total, 1.133 foram vítimas de feminicídio.

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Uma pesquisa feita pelo Núcleo de Gênero do Ministério Público em São Paulo, em março, apontou que 45% dos crimes ocorreram por separação ou pedido de separação, 30% por ciúmes ou posse e 17% em meio a uma discussão. A pesquisa analisou 364 casos de feminicídio em 121 cidades no estado de São Paulo

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Segundo o promotor de Justiça Wellington dos Santos Veloso, o feminicídio pode surgir em um intenso sentimento de posse e, em muitos casos, a mulher pode ser vista pelo agressor como objeto e o “ódio” levar à morte da vítima.

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“É a materialização da clássica ameaça segundo a qual ‘se você não vai ser minha, não será de ninguém’”, afirma.

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“No Brasil, o cenário que mais preocupa é o do crime cometido por parceiro íntimo, em contexto de violência doméstica e familiar, e que geralmente é precedido por outras formas de violência e, portanto, poderia ser evitado”, diz o promotor.

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Sinais antes da morte

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A psicóloga do Conselho Regional de Sorocaba Ione Aparecida Xavier salienta que amigos, parentes e, principalmente, as mulheres podem ficar atentos a possíveis sinais que podem levar à morte de uma vítima.

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“Quando a gente pensa em um primeiro sinal de violência e que a vítima pode se tornar uma vítima, entendo que consiste em não poder viver o seu sentido de liberdade plena a partir das suas escolhas, seus pensamentos e seus comportamentos.”

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Em relação aos casos existentes, Ione afirma que a tragédia deixa marcas psicológicas por gerações em um núcleo familiar. Com isso, aconselha que os parentes procurem ajuda para lidar com os traumas da perda.

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“É preciso ajudar também quem fica. É um desafio, mas é possível enfrentar esse problema.”

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Denúncias de violência contra a mulher podem ser feitas pelo número 180. O serviço é gratuito, funciona 24h por dia de qualquer lugar do Brasil e garante o anonimato.

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