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Falar da minha história não é coragem, é orgulho

Saiu no site PÚBLICO – PORTUGAL

 

Veja publicação original:  Falar da minha história não é coragem, é orgulho

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Ser agredido não é, nem pode ser, motivo de vergonha. É o agressor quem prevarica, não quem sofre abusos.

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Por Nelson Nunes

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Quando as coisas não são ditas ou reveladas, é como se não existissem. Ficam escondidas numa cave e só o dono sabe o lugar exacto onde as guardou. Quem passa, lá fora, não faz a menor ideia do que a cave guarda, mesmo que a riqueza que ali repousa seja de interesse público. É precisamente isto que sinto com a minha história relacionada com violência doméstica, que partilhei na semana passada, e que terá chegado aos olhos (e ao coração, espero) de uns largos milhares de pessoas. Mas há uma mensagem perdida no subtexto que me parece que não foi suficientemente clara.

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Nos últimos dias, o que mais tenho ouvido é algo deste estilo: “Parabéns por teres tido tanta coragem em contar uma experiência tão violenta”. Compreendo perfeitamente a ideia benevolente de que contar uma história com o poder da minha é um acto de bravura, de coragem. Porque nunca é fácil demonstrar que fomos joguetes nas mãos de um bicho estranho, nunca é fácil admitir que fomos dominados por uma besta, nunca é fácil revelar que estivemos numa posição de fraqueza em determinado momento da nossa vida. Concedo, por isso, que contar alguns detalhes tenebrosos sobre uma existência em que a violência doméstica foi um hábito seja entendido como um acto de coragem.

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Permitam-me, contudo, a liberdade de contestar essa ideia. A mim, nunca pareceu um acto de valentia contar o sofrimento que o meu pai nos impôs ao longo de mais de uma década. Quem está perto de mim sabe-o: nunca fiz disso segredo porque, de certo modo, toda a história me parecia — e continua a parecer — motivo de orgulho. Eu e, acima de tudo e todos, a minha mãe sobrevivemos. E a sobrevivência só pode ser lida como uma vitória, nunca uma derrota. E as vitórias comemoram-se, celebram-se, recordam-se. É por isso que nunca fiz segredo da minha história. Porque tenho orgulho em exibir uma cicatriz destas, como quem diz: “Isto aqui foi quando ia morrendo, mas consegui safar-me”. É como diz o ditado: aquilo que não me mata só me torna mais forte. E a minha história tornou-me mais forte. Melhor ainda: tornou a minha mãe na mulher mais forte e impressionantemente tenaz que alguma vez conheci. A título de exemplo: quando eu nasci, o meu pai roubava o humilde ordenado da minha mãe para gastar no casino, e não havia nada para comer naquela casa (sobrevivíamos apenas graças a uma tia, que nos ajudava a ter, pelo menos, uma refeição diária). Saltemos 25 anos para a frente e a minha mãe é agora uma mulher capaz de pagar o ensino superior (licenciatura e mestrado) ao seu filho, graças a muito esforço, à ajuda preciosa do meu padrasto e mais uns pozinhos de sorte. Nesse sentido, por que é que seria corajoso da minha parte revelar que a minha mãe é esta mulher formidável, que soube encontrar um modo (umas vezes por argúcia, outras por sorte) de se libertar de um homem que a agredia?

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Escrevi um artigo de jornal para demonstrar que uma história destas é comum, não é difícil de encontrar. Eu cresci com três histórias de violência doméstica ao meu redor. Ora, a menos que as estatísticas tenham sido antipáticas para comigo, queria-me parecer que eu não seria o único a ter passado por tal coisa. Estava certo: recebi dezenas, talvez centenas de mensagens nas horas seguintes, todas com uma história parecida. Ou de mulheres que, elas próprias, tinham sofrido às mãos dos companheiros, fosse a violência física ou psicológica; ou de pessoas que tinham crescido com pais abusadores; ou de familiares mais ou menos próximos. Mas a realidade ali estava perante os meus olhos: eu não sou o único, e é por isso que precisamos de ouvir mais histórias como a minha. Não para banalizar, mas para demonstrar que é um problema de interesse público, e não uma ou outra ocorrência isolada. Foi, aliás, por isso que recusei vários convites para ir à televisão falar do meu caso. Não quero fazer da minha história uma bandeira, quis apenas ajudar outros a partilhar a sua experiência e demonstrar que estes casos não são assim tão pouco comuns como o discurso público faz querer parecer.

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“Vamos continuar a querer mudar enquadramentos legais e discutir o problema no Parlamento, ou isso foi um mero preâmbulo da campanha eleitoral e vai ficar tudo igual? Tenho de continuar a ter medo que o meu pai regresse para nos atormentar porque o meu país não sabe proteger os seus cidadãos?”

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A ideia de que contar uma história destas só se consegue com valentia é também um problema em si mesmo: significa que é natural que as mulheres se inibam de denunciar os abusos de que foram alvo. E isso não é verdade. Ser agredido não é, nem pode ser, motivo de vergonha. É o agressor quem prevarica, não quem sofre abusos. Mas prolongar essa ideia de que é preciso ser-se sobre-humano para contar uma história destas é promover que outras mulheres se inibam de contar a sua experiência. E esse não é o caminho.

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Posto isto, repito a pergunta: agora que a indignação já passou, e que os retweetsjá não dão tantos likes, vamos continuar a ter vontade para mudar o que acontece na casa de tantas portuguesas, de todas as classes, de todas as etnias? Vamos continuar a querer mudar enquadramentos legais e discutir o problema no Parlamento, ou isso foi um mero preâmbulo da campanha eleitoral e vai ficar tudo igual? Tenho de continuar a ter medo que o meu pai regresse para nos atormentar porque o meu país não sabe proteger os seus cidadãos?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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