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Ela comia restos da feira na infância, mas chegou à Universidade de Coimbra

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Veja publicação original: Ela comia restos da feira na infância, mas chegou à Universidade de Coimbra

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Por Ricardo Ribeiro

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Primeira de sua família a chegar ao ensino superior, Luciana Carmo, 30, hoje estuda direito e filosofia na Universidade de Coimbra, uma das mais tradicionais da Europa, fundada em 1290. As salas que já foram de renomados juristas e diplomatas de elite, de escritores famosos, como Eça de Queiroz, agora são também da mulher que superou a infância de privações e obstáculos no Jardim Angela, zona sul de São Paulo, já considerado o mais perigoso do mundo pela ONU.

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A aluna do Mackenzie pelo ProUni, programa de financiamento estudantil do governo federal, conseguiu uma bolsa do Santander para o intercâmbio em Portugal, iniciado em 2016. A luta da mãe para aprender a escrever e o AVC do pai, que a levou a recolher restos da feira para se alimentar aos 11 anos, impulsionaram seus estudos marcaram seu entendimento da realidade.

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A formação gerou uma Luciana pesquisadora e ativista, que concilia vida acadêmica e participação em movimentos pelo direitos de mulheres, negros e LGBTs. Não por acaso ela assumiu no início do último ano letivo a presidência da Apeb (Associação de Estudantes Brasileiros em Coimbra). Uma história que ela conta em mais detalhes a seguir:

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Luciana Camargo/Arquivo pessoal
 Imagem: Luciana Camargo/Arquivo pessoal

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“Esse período da minha infância foi difícil. A gente quase sempre não tinha água. A luz cortada. O meu pai era metalúrgico e a máquina cortou um pedaço da mão. A empresa tentou colocar a culpa nele. Ninguém tira dois dedos e quase até o pulso de propósito. Aquilo mexeu tanto com meu pai que ele teve um AVC e não podia mais trabalhar. A minha mãe era empregada doméstica e eu ajudava como podia. Dava banho no meu pai. Recolhia material reciclável. Eu ia na feira pegar o que ficava no chão para a gente poder comer. Fiz isso durante anos. Não tenho vergonha.

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A gente é forjada na necessidade

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Não falo isso para me vitimizar. Eu digo porque é importante. Todas essas marcas fazem parte do que eu sou hoje. Não fiquei parada. Tentei achar uma solução. E isso é até hoje. Cheguei aqui procurando editais, buscando bolsas. Costumo dizer que a gente é forjada na necessidade. Quando você é criança, acha tudo bonito, eu falo isso em um poema que escrevi sobre essa época: ‘Os candeeiros tingiam de fumaça o teto/ Não tínhamos luz mas havia alegria/ Comia com a mão e sentava no chão/ Os restos da feira no prato/ A chuva que caia enchia meu copo/ E eu bebia a água que tinha/ Catando aquilo que tinha no chão/ Fazíamos banquetes a luz de velas/ Meus olhos de criança não sabiam o que era dor/ confundiam sempre tudo com beleza’.

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Luciana Camargo/Arquivo pessoal
 Atuação em edição especial de Monólogos da Vagina em PortugalImagem: Luciana Camargo/Arquivo pessoal

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Sim, a academia é um espaço elitizado e um espaço machista. Como mulher, de uma classe desfavorecida e de descendência africana, você destoa. Quando falamos de Universidade de Coimbra, falamos de tradição. Com a tradição, em um mundo patriarcal, vem isso. Está na sociedade, está nas instituições. A Apeb justamente discute essas questões. A luta contra a cobrança de propinas [custo anual dos cursos] sete vezes mais cara aos estrangeiros faz parte de uma discussão mais ampla sobre igualdade. Igualdade das propinas, mas também das mulheres, dos negros, das pessoas de classes menos favorecidas.

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Não querem que essas vozes contem sua própria história

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Coimbra ostenta o título de universidade mais brasileira fora do Brasil, pois tem hoje cerca de 3.000 alunos brasileiros, faz propaganda sobre isso, mas desrespeita o tratado internacional que garante a cobrança igual. Quem pode pagar 7.000 euros em um mestrado? Isso diz muito sobre que tipo de comunidade acadêmica você quer formar.

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Luciana Camargo/Arquivo pessoal
 Com o cantor Chico César e a vice-presidente da Apeb, Marcela Uchoa, em evento da universidadeImagem: Luciana Camargo/Arquivo pessoal

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Querem falar de mim como uma estatística, mas não querem que eu venha aqui. Não querem trazer a voz da periferia, a voz do nordeste. Não querem que essas vozes contem sua própria história. Nós precisamos ocupar esses espaços, que são nossos de direito. É assim que a gente consegue mudanças estruturais, com essa troca. A Marielle [Franco, vereadora assassinada neste ano, no Rio,] foi alguém silenciada brutalmente por ser essa voz.

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Sinto de uma forma intensa e partilho com outras brasileiras em Portugal situações específicas de xenofobia e machismo

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O machismo também é uma questão importante. Temos uma gestão feminista, com uma vice-presidente também mulher, a Marcela Uchoa, umas das pessoas incríveis que conheci nesse caminho e parte desse trabalho que é coletivo. Sinto de uma forma intensa e partilho com outras brasileiras em Portugal situações específicas de xenofobia e machismo. Por conta desse estereótipo da mulher brasileira como puta. E também racista, porque há essa questão da mulata sempre sexualizada. Você ouve algumas coisas e é preciso se posicionar.

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Luciana Camargo/Arquivo pessoal
 Marcela Uchoa, o cantor Marcelo D2 e Luciana Carmo em debate sobre despenalização das drogasImagem: Luciana Camargo/Arquivo pessoal

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O meu pai parou na quarta série. Minha mãe aprendeu a escrever apenas com 20 anos. Esse exemplo é muito forte para mim. Ainda criança, ela foi enviada para trabalhar em uma casa de uma família com mais posses, o que é muito comum. Cresceu em uma cidade no interior da Bahia, como o meu pai. É visto como uma vida melhor, mas é, na prática, quase um trabalho escravo. Essa família não permitia que minha mãe estudasse. Mas ela tinha a preocupação de aprender ao menos a escrever o próprio nome. Ela não tinha nem documentos. Era como se ela não existisse. Minha mãe, então, procurou escondido um convento na região e as freiras a ensinaram. Foi aí que eu entendi esse caráter libertador da educação.

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O problema da academia é esse: falta olhar para a realidade

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Além da educação e da luta política, a arte é algo muito importante na minha vida. Escrevo poesias, tive a honra de representar Coimbra na final de um concurso nacional português, o Slam Poetry, participo de um projeto na Bélgica sobre resistência política pela arte e atuei com outras ativistas em uma edição comemorativa de 20 anos do Monólogos da Vagina. Coisas que nem imaginava, que são muito grandes para alguém de onde eu vim.

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Luciana Camargo/Arquivo pessoal
 Em evento na semana passada, em Lisboa, com Guilherme Boulos, sobre a situação política no BrasilImagem: Luciana Camargo/Arquivo pessoal

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Quando cheguei aqui, em 2016, eu escrevi o poema onde falo da minha infância, daquele ano difícil, para a minha filha, de quem eu tenho muita saudade. O ‘Os meus 11 anos’ foi um presente para ela no aniversário de 11 anos dela. Quando eu escrevi e revivi tudo aquilo, foi uma catarse. Percebi que tinha uma relação entre o que passei, as lutas e o que estudamos aqui. O problema da academia, às vezes, é esse: falta olhar para a realidade.”

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Luciana Camargo/Arquivo pessoal
 Luciana em entrevista as canal português SIC sobre a prisão do ex-presidente LulaImagem: Luciana Camargo/Arquivo pessoal

 

 

 

 

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