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E se a dra. Valéria não fosse mulher e negra?

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Veja publicação original: E se a dra. Valéria não fosse mulher e negra?

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Por Irapuã Santana do Nascimento da Silva

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Um caso estarrecedor de racismo e violação às prerrogativas institucionais da OAB

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Correu por todas as redes sociais vídeos de um caso estarrecedor de racismo e violação às prerrogativas institucionais da OAB.

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A Dra. Valéria Santos compareceu com sua cliente a uma audiência do III Juizado Especial Cível de Duque de Caxias. Segundo relatos, ela não estava em posse de sua carteira da ordem – perdida pouco antes – e a juíza insistiu que encontrasse. Quando retornou, a juíza havia dado a audiência por encerrado, impossibilitando o acesso aos autos e à ata.

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Diante dos diversos abusos ocorridos, a Dra. Valéria afirmou que somente sairia do recinto após a chegada de um representante da OAB. Ao invés disso, a polícia militar foi chamada para retirar a Dra. Valéria do local. (Assista abaixo vídeo publicado pela coluna do Ancelmo Gois, em O Globo).

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É possível ver, em um dos vídeos, a advogada sentada no chão da porta da sala de audiências, algemada e completamente desamparada por quem estava à sua volta, apesar de bravamente resistir, expondo uma triste e revoltante situação.

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Após um tempo, a OAB finalmente interveio e acompanhou o caso até a delegacia de polícia.

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O caso está repleto de ilegalidades, desde o início. Onde está previsto que a audiência não pode começar sem que o procurador esteja portando sua carteira da Ordem? Ora, se não é uma exigência legal, não poderia ser oponível à Dra. Valéria! (abuso nº 1)

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Ao sair para cumprir uma exigência arbitrariamente imposta pela juíza leiga, a mesma pessoa que determinou a execução de um ato ilegal não concedeu tempo hábil para que fosse atendida e deu continuidade à audiência, deixando a autora do processo desprovida de sua advogada. (abuso nº 2)

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Quando a Dra. Valéria conseguiu achar sua carteira e retornar à sala, descobriu que havia sido apresentada contestação, bem como já havia terminado a audiência, sem que ela tivesse acesso ao conteúdo da defesa da parte adversa, para poder contrapor seus argumentos. (abuso nº 3)

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Diante de tantas irregularidades que seriam capazes de macular o processo com nulidade, a Dra. Valéria requereu a correção naquele momento, a fim de que não precisasse recorrer no futuro. Ao não ser atendida, a juíza leiga deu continuidade a esse lamentável episódio que resultou na prisão da nobre advogada.

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A juíza leiga violou o princípio da legalidade, na perspectiva individual, quando exigiu algo que não era necessário para dar início à audiência. Afinal, é lícito ao indivíduo fazer tudo aquilo que não é vedado em lei. A lei exige que um advogado exerça a defesa técnica, mas certamente há várias formas de comprovar que a Dra. Valéria é advogada.

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Ao iniciar a audiência sem que a autora estivesse com a advogada, a juíza leiga quebrou o dever de boa-fé, de cooperação, assim como violou o princípio do contraditório e o da ampla defesa. Nessa linha, também feriu o princípio da paridade de armas. Sua função era de estabelecer uma relação processual igualitária para que, caso as partes não chegassem a um acordo, tivessem seus argumentos expostos da melhor maneira possível, envolvendo todos os aspectos do caso em litígio.

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Quando a juíza inicia a audiência sem que a parte autora esteja devidamente assistida, demonstra má-fé na medida em que é – no mínimo – presumível que se aguardaria o retorno da advogada.

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Quando se encerra uma audiência em que foi apresentada contestação, sem a parte autora tenha acesso ao seu conteúdo, o processo fica claramente desequilibrado. Como alguém vai refutar algo que não teve ciência? Para além dos princípios do contraditório e da ampla defesa, a juíza leiga deliberadamente ignorou o disposto nos artigos 28 e 29 da lei 9.099/95:

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Art. 28. Na audiência de instrução e julgamento serão ouvidas as partes, colhida a prova e, em seguida, proferida a sentença.

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Art. 29. Serão decididos de plano todos os incidentes que possam interferir no regular prosseguimento da audiência. As demais questões serão decididas na sentença.

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        Parágrafo único. Sobre os documentos apresentados por uma das partes, manifestar-se-á imediatamente a parte contrária, sem interrupção da audiência.

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Por fim, ainda é possível identificar uma espécie de venire contra factum proprium por parte da juíza: como é possível prejudicar outrem por um fato que ela mesma deu causa?

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Sabendo que o juizado especial preza pela informalidade e pela efetividade, não haveria prejuízo numa eventual emenda à ata, com a ciência da contestação e posterior manifestação oral em réplica da Dra. Valéria. Entretanto, ao invés de adotar uma postura de composição, indo ao encontro de todos os princípios norteadores do juizado especial, a juíza leiga determinou a saída da aguerrida advogada com auxílio da força da polícia militar.

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E, infelizmente, a Dra. Valéria foi algemada e levada para a delegacia.

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Nessa curta frase, uma lei federal e uma súmula vinculante do STF foram completamente desrespeitadas.

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O art. 7º, IV do Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94) estabelece que é direito do advogado “ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB”. (grifei)

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A Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal contém o seguinte teor:

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Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. (grifei)

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Uma situação na qual a Dra. Valéria exigia o comparecimento de um representante da OAB para fazer valer suas prerrogativas, conforme art. 61, II do Estatuto da OAB, gerou sua prisão sem a presença do representante que ela havia requerido para outra finalidade, com o uso indigno de algemas.

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É evidente a ausência de receio de fuga, afinal a Dra. Valéria não queria sair do local, assim como a inexistência de perigo a integridade física de qualquer pessoa.

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Então, por que o uso das algemas? Por que chamar a polícia? Por que não dar vista dos autos à parte do processo? Por que exigir algo que não é requisito legal?

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Será que se não fosse fora da capital fluminense, esse acúmulo de ilegalidades ocorreria? Será que se não fosse com alguém atuando nos juizados especiais existiriam todos esses abusos?

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Histórica e empiricamente, em regra, a população negra sofre abusos e violência por parte das autoridades estatais, tratada sem empatia e o devido respeito mínimo. Sabemos também em qual parcela do povo incidem todas as piores estatísticas sociais.

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Foi perturbador assistir ao descaso das pessoas ao redor com tamanha situação de injustiça e impotência.

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A pergunta do título reverbera na minha mente: será que tudo isso aconteceria se a Dra. Valéria não fosse mulher e negra?

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Receio que não.

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