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Dear White People: Entenda porque a série da Netflix é tão importante para discutir o racismo

Saiu no site REVISTA GLAMOUR:

 

Veja publicação original: Dear White People: Entenda porque a série da Netflix é tão importante para discutir o racismo

 

A ativista feminista negra Stephanie Ribeiro destrincha para a Glamour a força da produção

 

Por Stephanie Ribeiro

 

Meu primeiro contato com “Dear White People” foi por meio do filme. Confesso que ele é importante para compreender a série, mas, ao meu ver, ela é muito melhor ao aparar algumas arestas. Depois, houve as notícias do boicote promovido por assinantes da Netflix, ofendidos com o lançamento da produção do serviço de streaming.

 

Sinceramente entendo o incômodo de sujeitos brancos com a série, afinal, muitas pessoas não gostam de tocar no assunto privilégio racial, uma realidade tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Privilégio este que concede aos indivíduos, em especial brancos, a possibilidade de não passar por uma série de ofensas e negação de direitos básicos a que negros são expostos. Vivemos numa sociedade anti-negra, não só por conta dos quase 400 anos de escravidão no Brasil, mas pelo racismo científico, que patologiza e exotifica o ser humano negro presente na nossa literatura, sociedade e cotidiano.

 

“Dear White People” aborda as inúmeras possibilidades de manifestações do racismo, aqui ou lá. Se o motivação para os eventos do filme e série são casos de blackface em festas universitárias norte-americanas, no Brasil temos o mesmo blackface racista em festas de alunos de medicina de uma faculdade do interior, nas novelas da maior emissora do país e em todo começo de ano no Carnaval.

 

Para nós, negros, a série é uma oportunidade de identificar que nossas falas não são em vão; ou até, a satisfação de um protagonismo que muitas séries norte-americanas nos dão, enquanto produções nacionais fogem totalmente da realidade do país de maioria negra. “Todo Mundo Odeia o Chris”, “Um Maluco no Pedaço”, “As Visões da Raven”, “Black-ish”, “Empire” são séries que fazem parte do imaginário negro brasileiro — construído na identificação com personagens de fora. Por aqui, nossa existência ainda é negligenciada nas representações.

Dear White People (Foto: Adam Rose/Netflix)

A naturalização do racismo presente e criticada na série vai desde as microagressões em falas com termos racistas até manifestações de extrema violência, como é o caso em que um policial aponta uma arma para um jovem simplesmente por conta de sua cor de pele. Na figura de todas as personagens eu me vejo e acho que muitos negros se vêem. Infelizmente o racismo nos une, muito além das fronteiras, numa narrativa de constantes violências. O nosso coletivo é feito na dor de se ver na dor do outro.

 

As personagens de “Dear White People” mostram que, mesmo com as diferenças de tonalidades da pele negra, das condições sociais, de poder e até mesmo de inteligência, o racismo se manifesta como forma desumanizadora contra todos nós. Até porque dizer que “somos todos humanos” não corrige uma realidade em que, mesmo humanos, não sejamos tratados como tal. Olhe para o lado: quantos negros estão ao seu redor, quantos desses ao seu redor não estão limpando, varrendo, servindo a você? Se você estudou em escolas particulares, quantas pessoas negras existiam no seu colégio como alunos? Quantos negros na sua universidade pública ou particular com mensalidade igual ou superior a três mil reais?

 

Se posicionar politicamente é ir contra a narrativa vigente que prega o silenciamento de nossas  vozes. Nossa simples existência é questionadora quando ela se mobiliza pela nossa emancipação e, por isso, ser ativista negro é uma total revolução dentro do nosso sistema. “Dear White People” é sobre ativismos e indivíduos ativistas, que atuam de formas diferentes em prol dessa emancipação — seja dentro da regra ou fora dela .A série mostra as diferenças na forma de lidar e atuar em relação ao racismo em cada uma de suas personagens:

 

Sam é a mulher negra de pele mais clara, fruto de uma família interracial, que na luta pela sua própria identidade. Ela vê no ativismo mais radical, sem conciliações com brancos racistas, sua voz e seu lugar. Porém, ainda tem problemas com a própria identidade a ponto de insistir em estereótipos essencialistas sobre “ser negro”: ela sente necessidade de mudar a música que está ouvindo e o jeito de andar para “soar” mais negra. Ela sente que precisa se pautar em ideais limitadores de uma negritude criada pela visão de brancos; ideais estes que muitos de nós defendemos como nossa verdade negra absoluta. Sam acredita, dentro de sua busca, que é tudo ou nada, não se dando conta que, por ter pele mais clara e ser de uma família com recursos, o nada para ela é diferente do nada para mulheres negras como Coco. Sam também representa uma parte dos ativistas que quer transformar a dor em ação — algo extremamente importante, mas nem sempre desejado por todos. É preciso respeitar o jeito de cada um.

 

Reggie é um ativista negro extremamente inteligente. Ele sabe que, para competir no mundo branco, é preciso ser sempre duas/três/quatro vezes melhor — ao mesmo tempo, isso não garante que ele não seja a próxima vítima do racismo. Quando se é negro, primeiro atiram, julgam, matam e depois se preocupam em saber de quem se trata. Reggie, em determinado momento da série, passa por uma violência extrema que nos faz lembrar porque ainda é importante diariamente dizer #BlackLivesMatter. Ser um homem negro e uma vítima não o eximem de experimentar o machismo que faz dele alguém que precisa contar vantagem na disputa com um homem branco em relação a uma mulher negra.

Dear White People (Foto: Netflix)

Em relação aos homens, acho que tanto Troy quanto Reggie veem mulheres negras conforme a tonalidade de pele, uma faceta do colorismo que, até mesmo entre negros, limita relações afetivas. A questão é muito mais debatida nos EUA do que aqui no Brasil e precisa ganhar voz. Troy também é, sem dúvidas, vítima da forma como o racismo faz nossos pais acreditarem que, se forem duros conosco, nos ensinarão a ser fortes. O mito desta força e de que, se nos comportarmos, o racismo não nos afeta, é uma falácia. Mesmo com roupas bonitas, cargos de prestígio e amigos brancos continuamos negros, e negros são tratados como negros.

Essa é a dificuldade de Gabe, o homem branco que quer se envolver com uma mulher negra sem perceber que só o amor não basta. As relações afetivas dentro da sociedade racista são complexas, você com certeza pode namorar uma negra e ser o primeiro a recorrer à violência estatal para se defender de um negro que julga raivoso por questionar as estruturas que o oprime. Então, sim, você pode namorar, ter parentes e amigos negros, que isso não te faz menos racista e incomodado com a questão racial.

Dear White People (Foto: Netflix)

Lionel é, para mim, super importante pois evidencia a homofobia da dita ‘comunidade negra’ e o racismo do meio gay, onde os padrões são homens brancos. Lionel é hiperssexualizado em um episódio da série, que toca no ponto de como nossos corpos e sexualidades são exotificados ao extremo. Já o ativismo de Lionel é o de bastidor, de extrema importância e muito comum em lutas históricas em que nem sempre um ator importante ganha visibilidade, mesmo sendo peça crucial.

 

Todas essas personagens falam sobre mim e aqueles que me são próximos em momentos diferentes desses cinco anos como ativista feminista negra. Talvez por isso Coco tenha sido a personagem com que mais me identifiquei atualmente. Em certo momento, ela diz: “Você não precisa ser escrava da causa”. Me vejo em situações em que, mesmo não querendo falar sobre racismo, se eu não o faço, me sinto uma falha, uma fraude, uma pessoa péssima.

Dear White People (Foto: Netlflix)

Facilmente acabamos nos tornando “escravos da causa” — até porque, em um país onde só negros aparentam se importar com o racismo, fica nas nossas costas a solução para o fim dessa estrutura. Nos limitam a ter voz política para falar sobre “assuntos negros”, só nos acham interessantes se pautarmos os “assuntos negros”, só nós nos preocupamos com as “questões negras”.

 

Assim, minha caixa de mensagens é bombardeada diariamente com mais um caso de mulher negra morta no parto, de jovem negro morto voltando para casa ou de criança que brincava de bolinha de gude e morreu depois de um tiro de “bala perdida”… É claro que eu me importo, pois eles morrem por serem negros. Eu sou negra, minha história é negra, minha vivência é marcada pela cor da minha pele. Poderia ser minha irmã, poderia ser um primo, poderia um amigo, namorado, pai, irmão. Poderia ser eu. Só que parece que só cabe a mim se chocar em relação a isso, só cabe a nós negros, pois uma parte da sociedade não entende que o racismo é problema de todos nós.

 

É triste como ser negro e ativista também é desumanizado. Você não pode errar. Você não pode se priorizar. Você não pode querer viajar nas férias. Você não pode não querer estudar negros, você não pode se manifestar feliz, afinal, “temos problemas sérios”. O peso do ativismo em nossas vidas é enorme; sendo mulher é ainda maior. Aceitam pais ausentes e agressores, mas não aceitam, muitas vezes, uma negra feminista.

Dear White People (Foto: Netlflix)

Coco é uma voz nas questões coloristas. Ela mostra que, nem mesmo dentro do próprio ativismo, mulheres negras de pele escura têm as mesmas chances de negras de pele mais clara. A diferença entre a forma com que ela e Sam usam seus cabelos diz muito. Coco sofre muito mais para ser aceita e se encaixar; basta um homem que ela admira dizer que é linda com seus cabelos naturais que ela se encoraja a mostrá-los.

 

Coco também deixa claro no filme e na série como homens negros podem e são cruéis com mulheres negras. Coco não é a mulher negra acostumada a ser elogiada e nem a mulher negra disputada, ela definitivamente é a mulher negra que tem que ser forte a todo momento para sobreviver. Coco é pobre e só depois do apoio financeiro de um homem branco pode estudar.

 

Coco é julgada por não ser tão radical por quem não tem a pele tão escura — ou tem tanto a perder quanto ela. Coco é a mais solitária; não é bem aceita por negros e brancos. Por mais que ninguém conheça tão bem o racismo que atingiu Reggie, não é vista como uma ativista de verdade. Porque o ativismo conciliador de Coco é um ativismo de autopreservação e sobrevivência, pouco admirado e difundido. Mas é a ele que mulheres negras, dado o gênero e a raça, muitas vezes precisam recorrer.

Dear White People (Foto: Netlflix)

Nem sempre podemos colocar os pés nas portas, nem sempre queremos dar nossas vidas pela causa e nem sempre as pessoas vão dizer que é mais difícil ser negra como Coco do que Sam. A autopreservação é vista como forma de egoísmo, cuidar de si é sem dúvidas ainda uma das formas de amor que a luta anti-racista não ensinou. Mas seguir em frente é tão importante quanto ir à luta. É com o tempo que vamos aprender que podemos ser Sam e Coco ao mesmo tempo.

Então, para nós negros, “Dear White People” é perfeita para desmistificar o ativista e mostrar que cada um lida e luda da forma como acredita que é melhor. Vale lembrar que Coco não é anti-negros, ela quer lutar dentro das normas. E, mesmo sabendo que as normas são brancas, ela tenta.

Dear White People (Foto: Adam Rose/Netflix)

Para as pessoas não-negras, “Dear White People” é a chance de entender que nós, por trás das nossas peles, possuímos humanidade, subjetividade, diferenças, falhas de caráter, formas diversas de lidar com a mesma situação — nem melhor e nem piores que outras –, que nos fazem tão pessoa quanto quaisquer outros. O único problema é que somos pessoas que, por negligência sociais, somos obrigadas até mesmo quando não queremos a falar sobre racismo. Alguns gritam, outros brigam, alguns escrevem, fazem poesia, outros respiram…

 

No fundo, nós, negros, sabemos que Malcom X e Martin Luther King, um radical e outro mais moderado, morreram da mesma forma. Não importa o que ou como se é, a batalha de cada um de nós (e de maneiras diferentes) é para que ser negro não seja um crime.

Só podemos fazer isso humanizando as pessoas. “Dear White People” é um presente nesse sentido.

 

 

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