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Cobrança de preços diferenciados em virtude do gênero

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Veja publicação original:    Cobrança de preços diferenciados em virtude do gênero

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Discriminação ou livre exercício de atividade econômica?

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Mariane G. de Mello Oliveira

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Recentemente, a Secretaria Nacional do Consumidor – Senacon reviu a Nota Técnica nº 2/2017, que proibia a cobrança de preços diferenciados entre homens e mulheres e, acertadamente, passou a considerá-la válida. A nova Nota Técnica (nº 11/2019) embasou-se, entre outros fundamentos, em uma ação civil pública ajuizada em Goiás pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, Seccional de Goiás – ABRASEL-GO (ACP nº 1002885-82.2017.4.01.3500), que, com parecer ministerial favorável desta subscritora, obteve sentença procedente para autorizar a cobrança diferenciada no comércio goiano. Vale ressaltar que igual pleito foi formulado pela ABRASEL-SP, também com sentença favorável (ACP nº 5009720-21.2017.403.6100).

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As Notas Técnicas do Senacon, embora não sejam atos normativos, são normalmente utilizadas como diretrizes por outros órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor para a formulação de políticas públicas de defesa dos direitos consumeristas. Por isso, essa última foi recentemente criticada na imprensa.

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Os que a repudiam apontam suposta violação aos princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia nas relações de consumo, por objetificar as mulheres, entendendo que se trataria de prática abusiva no fornecimento de produtos e serviços, em suposta violação às normas do Código de Defesa de Consumidor – CDC.

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Com a devida vênia, discordo desta tese. Em primeiro lugar, impende ressaltar que a isonomia entre homens e mulheres não implica sempre na adoção de tratamento idêntico para pessoas de ambos os sexos. Como diz a conhecida parêmia, cuja origem se atribui a Aristóteles: “devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”.

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A própria Carta Magna estabelece distinções entre homens e mulheres, como a isenção feminina da obrigação de cumprimento do serviço militar obrigatório (art. 143, § 2º) e a redução de cinco anos no tempo de contribuição e na idade mínima para as mulheres em relação aos homens para a aposentadoria voluntária de servidores (art. 40, § º, III, “a” e “b”). A PEC nº 06/2019, que trata da Reforma da Previdência, atualmente em discussão no Congresso, também prevê idade mínima de aposentadoria diferenciada para ambos, privilegiando as mulheres.

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Defendo que a cobrança de valores diferentes para o ingresso de homens e mulheres em eventos de lazer ou culturais com serviços de open bar e open food é legítima e não ofende o ordenamento jurídico.

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“I Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira”, realizado pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, em parceria com o Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), concluiu que as mulheres apresentam maior prevalência de abstinência (59%) e os homens bebem mais frequentemente, ou seja, 39% dos homens bebem pelo menos 1 vez/semana, dos quais 11% bebem diariamente. A quantidade de bebida por ocasião de consumo também difere conforme o sexo, ou seja, enquanto a maioria das mulheres (68%) bebeu até 2 doses de álcool na última ocasião, 38% dos homens beberam 5 ou mais doses, dos quais 11% beberam 12 ou mais doses na última ocasião. 1

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Dos dados apresentados, nota-se que a proporção de mulheres que fazem uso de bebidas alcoólicas é bem menor que a de homens.

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Logo, é economicamente justificável que o ingresso de homens em eventos culturais open bar seja mais caro que o de mulheres, já que se presume que o consumo masculino de álcool será maior que o consumo feminino.

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Do mesmo modo, o consumo de alimentos para homens e mulheres é diferente, conforme as características fisiológicas e metabólicas de cada sexo. Uma mulher de 1,70m necessita ingerir de 1850 kcal a 2800 kcal por dia, enquanto que um homem de 1,70m necessita ingerir de 2100 kcal a 3100 kcal por dia, por exemplo. 2

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Ademais, a exigência de que sejam cobrados valores iguais para homens e mulheres, na hipótese em comento, fere os princípios constitucionais da livre iniciativa, da livre concorrência e do livre exercício da atividade econômica (art. 170, caput, IV e parágrafo único, da CF.)

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Ora, o CDC estabelece que a Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo (art. 4º). Assim, a intervenção estatal, nas relações de consumo, somente pode dar-se quando verificado efetivamente a violação aos preceitos apontados.

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Não é legítimo que o Estado ou seus agentes imponham seus próprios padrões morais de comportamento à sociedade. Não se verifica na prática adotada por comerciantes e promotores de eventos culturais nada que fira a dignidade, a integridade moral e a honra objetiva das pessoas do gênero feminino que deles participam.

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A doutrina constitucional debate-se quanto à definição e ao alcance do princípio da dignidade da pessoa humana, para parcela da dogmática nacional, o vetor hermenêutico mais adequado é aquele proposto pela ética kantiana, o postulado de que nenhum ser humano pode ser tomado como meio para determinado fim, mas, ao contrário, a pessoa deve ser tratada como um fim em si mesma.

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A atuação estatal no mercado de consumo deve em princípio privilegiar a autonomia da vontade, o querer individual de cada mulher que se dispõe a participar ou não dos mais variados eventos de lazer ou culturais, pois não se pode excluir da análise de uma suposta violação à dignidade humana, a percepção que cada mulher tem de si mesma e das condutas que estão nos limites subjetivos da sua compreensão do que constitui sua própria dignidade.

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A prática de cobrar valores diferentes para o ingresso de homens e mulheres em eventos culturais é antiga.

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Não se tem notícia de que tenha havido ação estatal visando inibi-la, anteriormente, o que gerou a compreensão social de que tal prática é legítima. O que ocorre agora é que determinados órgãos da sociedade passaram a interpretá-la ideologicamente e não juridicamente.

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Nada obstante, a garantia constitucional de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, da Constituição Federal), constitui verdadeiro óbice à aplicação de freios legais ou morais ao livre comércio, já que não há qualquer inovação normativa que impeça a cobrança de valores diferentes para ingresso de homens e mulheres em eventos de lazer ou culturais.

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Ademais, o aspecto mercadológico não pode ser desprezado, na medida em que descontos oferecidos para mulheres em casas noturnas e festas pagas servem como atrativo para que estas, notadamente mais arredias à participação que os homens em eventos dessa natureza, sintam-se mais encorajadas a participar, no interesse de todos.

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A mesma estratégia de marketing pode também privilegiar apenas o sexo masculino.

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É o caso de salões de beleza e clínicas de estética que oferecem descontos dirigidos apenas ao público masculino, buscando atrair este segmento menos assíduo, recebidos tranquilamente pela sociedade. Trata-se de pura e legítima estratégia de marketing, que não atenta à dignidade dos homens.

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No mercado de consumo atual são comuns as ofertas promocionais para atrair segmentos específicos de consumidores: as crianças (brinquedotecas em shoppings e restaurantes); os adolescentes (excursões escolares e parques temáticos); os estudantes (meia entrada), os casais (hotéis que não aceitam crianças); os idosos (excursões para a melhor idade); os religiosos (retiros espirituais); o público LGBT (cruzeiros exclusivos e hotéis gay-friendly); etc. O mercado está atento a fatias rentáveis de consumo, em todos os setores. Já existem inclusive serviços de motorista por aplicativo e vagões de metrô exclusivo para mulheres. Seriam tais ofertas discriminatórias?

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A oferta com estímulo ao consumo é a máquina motora da atividade econômica. Portanto, não se pode afirmar, com isenção, que o marketing do privilégio para mulheres seja discriminatório em prejuízo da dignidade da pessoa humana. No Código de Defesa do Consumidor não há uma linha sequer que proíba a oferta promocional com privilégios ou vantagens para atrair determinado segmento do mercado de consumo. Ademais, o consumidor tem plena liberdade de escolha de decidir se aceita tais descontos ou privilégios. O que não cabe é, num regime democrático e de livre mercado, criar-se precedentes para uma perigosa intervenção estatal na economia e na liberdade dos cidadãos.

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1Disponível em: http://www.cisa.org.br/artigo/155/i-levantamento-nacional-sobre-os-padroes.php. Acesso em: 13/10/2017.

2http://bemstar.globo.com/index.php?modulo=tab_nutri&id_tipo=200

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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