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As dificuldades no acesso aos direitos

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As dificuldades enfrentadas pelas Calins no acesso aos direitos

 

m 2006 foi instituído o Dia Nacional do Cigano, comemorado no dia 24 de maio. Desde então, algumas ações foram realizadas como uma forma de dar visibilidade e atender às necessidade dos povos ciganos. A Portaria nº 1.820, do Ministério da Saúde, por exemplo, afirma no parágrafo único do art. 4º que “É direito da pessoa, na rede de serviços de saúde, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude de idade, raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais, estado de saúde, de anomalia, patologia ou deficiência”. Além disso, na Portaria nº 940, de 2011, que regulamenta o Sistema Cartão Nacional de Saúde (Sistema Cartão), é dito no § 1º do art. 23 que não há obrigatoriedade de comprovação de domicílio para os ciganos nômades poderem se cadastrar. Apesar dos avanços, as cinco irmãs ciganas, Vilma Aparecida Fernandes (49), Luci Fernandes (46), Delir Fernandes (43), Maria Paula Aparecida Fernandes (39) e Lindacir Fernandes (37), alegam enfrentar outra realidade quando o assunto é prevenção, saúde e serviços públicos.

O cheiro de comida desperta as crianças famintas que começam a rodear o fogão no acampamento da família Fernandes. Enquanto os filhos conversam e soltam pipa, uma das ciganas começa a cozinhar. Outra, de cócoras, utiliza uma bacia apoiada no chão para lavar colheres, pratos, copos e potes de plástico que serão usados no almoço. Na maioria das vezes, as refeições são feitas em conjunto.

– A gente divide tudo. Todas as comida. Vamos supor, quando eu faço almoço, não deixo nenhuma delas fazer, come tudo aqui comigo. À tarde, se a Linda fizer pão na barraca dela, nós come tudo lá. E nós não tem preferência de comida não, é o que tem pra comer. Encheu a barriga, valeu! – afirma Delir, aos risos, enquanto descasca batatas com uma faca afiada, mas sem cabo.

Ao centro do terreno, uma das cinco irmãs Calins retira água da mangueira preta caída ao chão. Ela enche uma jarra de plástico que será utilizada para servir um suco de tangerina, da marca Tang, no almoço.

Essa é a única saída de água utilizada pelos 17 habitantes do local. A instalação foi feita, em janeiro de 2017, pelo Núcleo de Atendimento Social (NAS), da Companhia Águas de Joinville. A tubulação vem da Igreja protestante Cristo é Vida, que permitiu o compartilhamento da água. A ação apenas tornou-se viável porque os fundos do terreno ocupado pelas ciganas pertence ao centro religioso. E, dentro da legislação vigente, a companhia somente poderia atender a essa demanda se solicitada pelo proprietário do lote. As Calins se consideram católicas e contam que foram bem recebidas pelo pastor Benjamim dos Santos, desde que começaram a frequentar os cultos, aos sábados, para “ouvir a palavra de Deus”.

De acordo com João Abeid Filho, assistente em suporte administrativo do NAS, ele e sua equipe já haviam passado pelo local anteriormente. No entanto, como pensavam que se tratava de uma ocupação temporária, dada a característica migratória estereotipada da cultura cigana, nada foi feito. Em novembro de 2016, a companhia recebeu um e-mail do então gerente da SAS de Joinville, Marcio Sell, que reivindicava, a pedido do diretor do órgão governamental, a viabilização da ligação de água para o acampamento Calon. Foi quando começaram a pensar em estratégias para solucionar o problema.

Desde então, a conta de água passou a vir no nome da Igreja, mas são as Calins que pagam para o pastor Benjamim. O cavalete e hidrômetro foram cedidos pela companhia, para que o volume de água utilizado pelo grupo fosse calculado. João Abeid afirma que ficaram surpresos com a economia de água feita pelas ciganas.

– Preocupados com o possível consumo de água e a viabilidade de arcarem com esse custo, em função do número de pessoas no local, fizemos um acompanhamento semanal, verificando as leituras antes mesmo que fosse gerada a primeira fatura. Em uma dessas visitas estava chovendo e elas estavam com tonéis captando água de chuva, o que me surpreendeu, uma vez que já tinham água regular. Elas informaram que usariam nossa água apenas para beber e que usariam a água de chuva para as demais necessidades. Então, desistimos de levar nossa equipe de educação ambiental e entendemos que elas é que têm a nos ensinar como economizar água.

Conforme o assistente em suporte administrativo do NAS, o consumo da primeira fatura foi de 11 m³, apenas um metro cúbico a mais do que o cobrado como taxa mínima para a tarifa correspondente à classe residencial comum.

– A estimativa de consumo mensal médio no Brasil é de 6m³, por pessoa. Isso quer dizer que o consumo delas equivale ao de uma família de apenas duas pessoas. E esse consumo se manteve nos meses posteriores.

Antes da intervenção feita pelo NAS, e desde que chegaram ao acampamento há cinco anos, as ciganas apenas conseguiam água comprando de uma vizinha, que mora do outro lado da rua – a única do bairro que lhes ofereceu. Inicialmente, eram cobrados R$ 20 mensais, para cada barraca. Uma média de seis a sete galões, que pesavam mais de 10 kg, eram utilizados por dia. As cinco irmãs se revezavam para carregar, já que era necessário duas pessoas para fazer o transporte, uma segurava na frente e outra atrás. A água, retirada pela torneira do jardim da vizinha, não era filtrada.

– Sem tempo né, porque ninguém queria dar água ali. Então nós aceitava, nós pedia água e pagava. Mas aí ela foi cobrando cada vez mais da gente, porque foi aumentando a água e daí ela aumentou pra nós também. Na última vez que nós pegamo água, ela tava cobrando R$ 30.Nós pagava caro pra ela, mas valia a pena, ela cedeu água pra nós por cinco anos. Mas aí agora a gente conseguiu essa da Águas de Joinville, meu Deus do céu, foi um alívio. Nós puxava água de lá pra tomar banho, mas ainda ficava com pouca água pra se lavar – relata Luci.

As Calins costumam tomar banho duas vezes ao dia. Apenas duas barracas possuem uma área reservada para banho, que é dividida por cortinas verde e laranja neón, feitas por elas próprias. Nesse local, uma tábua é sustentada por grandes pedras, localizadas nas quatro pontas para dar equilíbrio. Em cima da madeira, fica um galão retangular de plástico, cortado ao meio, onde depositam a água que será usada para o banho, e uma leiteira de alumínio. Em pé, ao lado do galão, as ciganas utilizam a leiteira para pegar água e se lavar. O mesmo recipiente que antes era utilizado para trazer a água retirada da vizinha até o acampamento, agora serve para transportar o líquido da mangueira preta, no centro do terreno, até os fundos das barracas. O perigo diminuiu, pois as ciganas não precisam mais atravessar a rua e passar entre os carros, que nem sempre param. Mas as dores nas costas continuam, já que o trabalho físico diário é pesado.

Atualmente, com a instalação do sistema disponibilizado pela companhia Águas de Joinville, as ciganas podem consumir até 10 mil litros de água, por mês, e pagar a tarifa mínima de R$ 31,34, conforme a tabela tarifária de água e esgoto da Companhia de Saneamento Básico, de Joinville. Se elas continuassem a comprar água do terreno vizinho, estariam pagando um valor de R$ 180,00, por mês, para as seis barracas. E mesmo com a redução dos gastos, as ciganas continuam racionalizando água para a comida e limpeza das roupas.

– Agora nós pega aquele galão quando chove, e nós enche pra lavar roupa. Pra conservar um pouco de água ali, porque se não vem estourado pra nós, sabe. Assim economiza água um pouco – revela Delir, consciente do pouco dinheiro que possuem para arcar com as despesas da família.

Depois do almoço, as irmãs ciganas se reúnem na mesma barraca para se distrair, conversar e descansar. Um ventilador antigo e enferrujado é ligado, para que o ambiente embaixo da lona preta fique menos abafado. Enquanto elas dividem sofás e cadeiras de plástico quebradas, as crianças continuam a brincar. O filho de Lindacir, que agora tem sete anos, monopoliza o Playstation 2, sem tirar os olhos da televisão. Enquanto Guguinha, o caçula de Luci, de 11 anos, fica sentado na ponta da cama, apenas olhando para o videogame.

– Ô Guguinha, dá uma água pra eu tomar esse remédio aqui. Por que será que eu não consigo levantar a perna? Repuxa tudo aqui na nas costa. Eu já fui no posto e eles me deram a morfina e a receita pra mim comprar o remédio. Mas é longe, pra ir de a pé num dá. Os únicos remédios que eu pego no postinho é o pra labirintite e o Biofenac, o Diazepam não fornece aí tem que comprar – sem conseguir fazer movimentos bruscos, Lindacir põe as mãos nas costas e reclama de dor.

Enquanto isso, nas pontinhas dos pés, Guguinha pega uma bolsa em cima de uma pilha de cobertores apoiados em uma bancada de madeira. Dentro, diversas caixas de remédios e cartelas com comprimidos se chocam ao caírem no colo de Lindacir. Ela tenta identificar pelas cores e tarjas qual medicamento deve tomar. Algumas horas atrás, ela já havia tirado da mesma sacola um remédio para azia. Agora, ela procurava um para a dor na lombar.

– O pior é que eu não consigo nem deitar. E se eu não tomar o remédio eu não durmo. Por causa da dor e também porque a gente tem depressão, sabe. Aí tem que tomar o remédio controlado. Tudo nós aqui. Se não tomar o remédio, a cabeça fica rodando.

Quando as ciganas chegaram à Joinville, já tomavam remédio para depressão, mas com a falta diária de alimentos, insegurança e insalubridade no terreno, o sofrimento aumentou. O caso de Lindacir ainda tem um agravante, pois até hoje não superou a perda do marido e do filho mais velho. As irmãs contam que, na mesma época, ela acordava de madrugada com crises de choro compulsivas e sem conseguir levantar da cama o resto do dia.

– Depois do que aconteceu comigo, meu Deus, entrei numa depressão. Se não fosse esses remédio eu passava dia e noite chorando e num quero conversar com ninguém. Eu bebia o dia inteiro. Eu tive dois ano e meio bebendo pinga. O meu café da manhã era pinga, dia e noite. Mas aí fui vendo que não valia a pena. E acaba com a saúde da gente, mas resolver não resolve. Só piora – confirma Lindacir.

Assim, todas logo foram à procura de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) para conseguirem mais medicamentos. Após a primeira consulta foi dito que precisariam de um acompanhamento terapêutico e psicológico, mensal. No entanto, algumas dificuldades apareceram, como a distância para chegar até o posto de saúde do bairro em que vivem.

– A gente só pode marcar consulta na sexta-feira. Daí chega no dia e nós temo que ir lá no Jerivatuba pra marcar. Vai a pé e volta a pé. Daí a moça pede os papeizinhos e a gente tem que ir lá de novo, num horário certo. Vamos supor, se a consulta é lá 13h, a gente tem que sair daqui meio-dia, ou 11h30. Porque até chegar lá, com o problema que nós tamo de dor, leva duas ou três horas – conta Delir.

Quando não há perspectivas de atendimento a curto prazo para as ciganas, Antônio Carvalho Martins Filho, graduado em Direito, que as tem ajudado em Joinville, reúne alguns amigos para que voluntariamente possam arcar com algumas despesas em prol da saúde das irmãs Fernandes. Foi o que aconteceu com Lindacir. No início deste ano, a dor na lombar já não a deixava caminhar. Depois de vê-la “literalmente se arrastando no chão”, ele e alguns companheiros pagaram uma consulta, uma ressonância e algumas sessões de fisioterapia. O dinheiro serviu para identificar a Osteoporose e três hérnias de disco na jovem cigana, de 37 anos. O tratamento ajudou a suavizar as dores, mas não por muito tempo. Para Martins, se fossem esperar a fila do Sistema Único de saúde (SUS), Lindacir ia morrer, pois não aguentava o sofrimento.

No entanto, Akadenilques de Oliveira, representante da Secretaria de Saúde do município, declara que atitudes como essas não são eficazes, pois é importante que os pacientes sejam atendidos desde o início pela UBS.

– Não adianta fazer um caminho pelas beiras, porque para ela ter uma consulta especializada no SUS ela deve ser avaliada primeiro pelo clínico geral. Depois que ele fizer o encaminhamento pelo sistema, ela irá automaticamente para a fila aguardar. E existe uma demora considerável, mas não é tanto. Elas têm que pegar o caminho certo. Se ela piorar daqui a oito meses, o exame antigo não vai ser tão eficiente, ela vai precisar de outro atualizado. E depois que ela fizer a cirurgia lá na frente, ela vai voltar pra unidade de saúde. E quem vai atender é o médico que a encaminhou, que sabe do caso dela, para continuar o tratamento. É lá na unidade de saúde que ela vai receber pelo SUS as autorizações da fisioterapia, medicamentos, e todo o restante do acompanhamento.

Já a presidenta da AMSK, defende que essas iniciativas são necessárias, uma vez que as ciganas não costumam ser bem recebidas nos postos de saúde.

– Com a Lindacir não foi diferente, às vezes o pessoal do posto olha, manda voltar, diz que não é uma dor e dá só Paracetamol. Não evolui. Para evoluir, eu ou o Martins precisamos ir junto, porque somos letrados.

Segundo Lindacir, faz quatro meses que ela aguarda ser chamada para fazer um raio-x no posto de saúde do Jarivatuba.

– Eu tive no postinho, só que não chamaram ainda. Eu cansei de ir lá pra reclamar de dor, mas eles me dão um remédio e, ao invés de eu melhorar, tá me dando outro problema, no estômago agora. Não vale a pena isso daí, não resolve nada.

Elisa Costa ressalta ainda que falta um acompanhamento dos agentes comunitários de saúde, pois o cotidiano delas acaba por agravar os problemas. Principalmente pela própria estrutura do acampamento onde vivem.

– A Lindacir não pode pegar peso, mas só a fisioterapia não vai resolver, porque ela continua carregando os galões de água todo dia e agachando para pegar coisas no chão. Não tem um resguardo. E na ausência de um acompanhamento elas acabam se automedicando, o que é um problema também.

A falta de documentação é outro impedimento. Maria Paula não possui carteira do SUS, porque teve seus documentos queimados pelo primeiro marido, em São Paulo. Depois de viver um relacionamento abusivo e violento, teve o consentimento do cunhado para se divorciar. Após a aprovação, casou com outro cigano, de 60 anos, que veio a falecer no início deste ano. Até então, nunca precisou dos documentos de identificação e, por este motivo, nunca tentou resgatá-los. Mas agora, após cair de uma cadeira de plástico, dentro do acampamento, e deslocar a patela do joelho esquerdo, não lhe restou outra alternativa, já que se recusaram a atendê-la no posto de saúde.

– Na primeira vez que ela foi ao hospital, sozinha, não foi recebida. O atendente disse, “você não tem documentos, então você não pode ser atendida”. Assim ela voltou pra casa e ficou 18 dias com o joelho machucado, sem conseguir andar direito. Quando eu cheguei em Joinville, nós voltamos ao hospital tentar uma consulta. Quando chegamos lá, o cara passou o rádio, “deixa ela entrar, deixa ela entrar, a senhora está sem documento, mas entra”, porque viu a gente junto. E normalmente é assim. O Estado só sabe que elas existem, porque eu fui lá avisar – pontua Elisa Costa, que acompanhou a situação.

Depois que Maria Paula conseguiu passar da recepção, outro obstáculo causou desconforto. A presidenta da AMSK pediu para acompanhá-la dentro do consultório, tanto para entender qual seria o diagnóstico do médico como para acompanhar Maria Paula, que estava insegura.

– Toda mulher tem o direito de ser atendida com acompanhante. E comunidade tradicional mais ainda. Eu pedi para entrar com ela no consultório, mas o médico bloqueou a minha entrada. Para as outras mulheres levantarem a saia já é um problema. Para a Maria Paula mostrar o joelho, ela quase morreu de vergonha, é muito constrangimento.

Ao final do atendimento, o médico recomendou que a cigana fizesse uma consulta com um especialista de joelho, pois seu caso era sério e talvez precisasse de cirurgia. Também alertou para que tomasse cuidado, já que estava sem documentos e provavelmente não conseguiria marcar. Para Elisa, essa atitude é inadmissível, porque vai contra a lei orgânica do SUS.

– Primeiro que um médico não pode fazer essa intervenção, defender um erro administrativo do atendimento. E, segundo, ele não pode desconhecer uma regra como essa, fazendo parte de uma estrutura como o SUS. A Constituição garante que todo cidadão tenha acesso universal à saúde. Ninguém percebeu porque ela estava sem o documento. Ela não pode ser barrada num hospital por não ter documentação.

Martins Filho acompanha o caso desde o ano passado e já tentou resgatar os documentos de Maria Paula no cartório de Três Pontas – MG, onde a cigana nasceu. Porém, o local havia pegado fogo e nada foi recuperado. Agora, tramita na Promotoria de Justiça de Joinville um processo para que ela consiga prioridade de atendimento no cartório do município.

– Eu entrei como declarante no processo, para que eu pudesse ajudar. Ela precisa ir no cartório com duas testemunhas, mas, antes disso, o juiz da defensoria pública tem que aprovar com caráter de urgência, porque tem mais de 600 pessoas na frente dela. Isso demoraria uns dois ou três anos, no mínimo.

Elisa Costa ressalta que as imagens negativas criadas a respeito dos ciganos tendem a dificultar esse processo.

– Infelizmente a fama é de que todo cigano tem duas, três, quatro, cinco carteiras, porque em cada estado você faz uma. Faz apenas um mês que foi aprovado no Senado a carteira unificada, e isso vai demorar um tempo para acontecer. Então, a gente precisa juntar evidências para convencer e provar duas vezes que a Maria Paula não vai usar esse documento para algo ilícito.

Atualmente, as irmãs Luci, Vilma e Delir são as únicas que recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC), da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em função dos diagnósticos de depressão e problemas de saúde aprovados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Após sofrer uma parada cardíaca, Luci sobrevive atualmente com uma ponte de safena. Vilma foi diagnosticada com Osteofitose, popularmente chamada de “bico de papagaio”. E Delir recebeu alta no fim do ano passado, após ficar um mês internada com Leptospirose. Mas o valor de um salário mínimo que cada uma recebe mensalmente, e é dividido entre todos da família, corre o risco de ser bloqueado. Isto porque elas não tinham conhecimento e nem têm autonomia e condições de se deslocar até a Secretaria de Assistência Social de Joinville para fazer a atualização do Cadastro Único de Programas Sociais do Governo Federal – que desde 2016 passou a ser requisito obrigatório para a concessão do benefício.

Maria Paula ainda não conseguiu nenhum benefício, porque precisa dos documentos para realizar qualquer tipo de solicitação. Já Lindacir, que não têm condições de trabalhar, por conta de sua depressão e dor nas costas, ainda não possui BPC, pois teve o laudo negado na perícia médica do INSS.

– Eu fui travada pra lá, com essa dor na coluna, mas eu não sabia ainda o problema. Pra mim era dor nos rins. Então quando ele perguntava “o que você sente?”, “dor nos rim”, eu dizia. Mas o médico que cuidava de nós antes já tinha dito pra mim que era dor lombar crônica. Eu fui com o laudo, fui com tudo. Mas se eu pudesse processar esse homem, eu processava, com gosto e prazer. Por causa de eu pegar meu filho, com fome, sem ter o dinheiro da passagem, quem pagou a passagem pra mim foi a vizinha. Fui com o Iram, no maior grito lá no terminal, e eu chegar com esse homem, com essa dificuldade, nessa situação e ele inventar um papel lá, que eu me abaixei, que fiz isso e aquilo sozinha, sendo que ele que me ajudou a sentar na mesa. A minha raiva dele é por causa disso, de ele saber, ser o médico e ter o estudo. Porque o médico serve pra saber do problema do paciente. Agora, ele sabia meio por cima do meu problema e recusou? – desabafa Lindacir.

Elisa Costa ressalta sua indignação com a situação da cigana.

– A barreira pra chegar no direito, apenas vai se estendendo, porque você nunca espera que um perito, que ajuda ela a se locomover, minta no laudo que ela pegou uma folha normal, sem problema na coluna. E na realidade ela não fez isso, porque ela não conseguia fazer isso.

Para Elisa, todos esses constrangimentos poderiam ter sido evitados caso uma busca ativa tivesse sido efetivada pela SAS no acampamento, anteriormente. Estefânia de Souza, psicóloga que coordena o Serviço de Atendimento Proteção Básica, da Secretaria de Assistência Social (SAS) de Joinville, justifica a ausência desse serviço.

– Acontece que agora que está começando a parecer que elas estão fixas ali. Depois de um tempo, até as pessoas estão começando a ver. Nós temos que atender 75% do território, então não tem como atender todo mundo. A gente não tinha muitos profissionais pra poder fazer essa busca ativa, então não tinha gente suficiente pra fazer um trabalho efetivo. Ano passado eu tava com dois assistentes sociais. Era impossível fazer uma ação com elas. Por isso que elas eram atendidas pontualmente só quando vinham aqui [na Secretaria]. Hoje eu posso, porque tenho sete assistentes.

A profissional confessa nunca ter tido acesso ao Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos, lançado em 2013, pela SEPPIR, mas reconhece que existe “uma abordagem diferente que deve ser estudada para atender esses grupos”. Em maio de 2017, após uma primeira conversa com as ciganas dentro do terreno ocupado, Estefânia já acionou uma assistente social para fazer o acompanhamento do grupo Calon a longo prazo.

Outra ação que deve ser realizada pela SAS é a interferência no âmbito da educação para que a comunidade do acampamento da rua Agulhas Negras tenha acesso à escola. Hoje, apenas Iram, filho de Lindacir, está estudando. A cigana ainda sublinha que só conseguiram a vaga porque Elisa Costa as acompanhou nesse processo – já que tentaram anteriormente, mas não obtiveram sucesso. Em 2014, as irmãs Fernandes começaram a frequentar o Centro de Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas pararam depois de três meses, porque a distância e limitações físicas tornaram-se impedimentos. Além disso, elas não se sentiam confortáveis dentro do espaço de sala de aula.

– As pessoas falam, “ah, elas não estudam porque elas não gostam de escola”. A mulher já é uma vitrine, agora eu convido qualquer um pra botar uma saia de cigana e frequentar a escola, é muito difícil. E elas precisam cuidar das crianças, as ciganas não largam seus filhos. Elas não vão botar numa creche, vão botar na escola, pra ir buscar. Como a Linda faz com o Iram. Como todas fizeram com os meninos mais velhos, e que depois tiveram que sair, porque tem que trabalhar. Mas aí não tem emprego pra cigana. Então é uma sequência. É preciso tentar trazer um circuito de educação para dentro do acampamento, porque elas querem aprender a ler e escrever – sustenta Elisa Costa.

A presidenta da AMSK faz referência à resolução 181 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), deferida em novembro de 2016, que, pela primeira vez, inclui crianças e adolescentes de comunidades tradicionais ao direito à educação, à manutenção da língua e territorialidade cultural.

No mesmo ano, Guguinha também conseguiu uma vaga, mas teve que viajar para o casamento do irmão, em São Paulo, e quando regressou já não pode mais frequentar o colégio.

– O que é preciso é o cumprimento da Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) nº 3, aprovada pelo Ministério da Educação em maio de 2012, que define as diretrizes para o atendimento escolar de comunidades tradicionais e para crianças em situação de itinerância, como parquistas, circenses e ciganos. Então a escola é obrigada a disponibilizar uma vaga para essas crianças. E mesmo que elas não apresentem o histórico escolar é só dizer na escola qual o colégio que elas estudavam. Porque a grande dificuldade é trazer o documento. Mas aí a escola puxa isso, ou é feito o teste de nivelamento. Mas a colocação de “não temos vaga” é inaceitável – critica Elisa.

Os Povos Romani possuem na sua cultura a história oral como o meio tradicional de compartilhamento de informações para os demais descendentes. O conhecimento passado entre as gerações é mais valorizado do que o adquirido por meio do ensino formal. No entanto, essa realidade tem mudado ao longo dos últimos anos.

– É bom saber estudar um pouco, até mesmo pra não deixar ninguém passar a perna na gente, né – destaca Delir.

 

 

 

 

 

 

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