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“Ainda somos um país muito intolerante, preconceituoso e hipócrita”, diz Leandra Leal

Saiu no site ÉPOCA;

A atriz – e agora cineasta – lança Divinas Divas, documentário sobre a trajetória de oito travestis pioneiras do teatro brasileiro

LUÍS LIMA

“Ser mulher é muito fácil para quem já é. Mas para quem nasce para ser João é um sacrifício a transformação.” O trecho de uma das canções do espetáculo Les girls, o primeiro com travestis do Brasil, foi revivido no palco do Teatro Rival, no Rio de Janeiro, em 2014. O motivo foi a celebração dos 50 anos de carreira de oito atrizes travestis, pioneiras da dramaturgia nacional, como Rogéria, Jane Di Castro e Divina Valéria. Na ocasião, a atriz  – e agora cineasta – Leandra Leal gravou o reencontro das que batizou, em seu documentário de estreia, Divinas divas. O filme entra em circuito nacional na próxima quinta-feira, dia 22, e vai além das perucas, plumas e dos paetês que as divas ostentam em cena. “Queria muito mostrar o ser humano por trás delas, com toda a complexidade de cada uma”, disse Leandra em entrevista a ÉPOCA. Ela é neta do empresário Américo Leal, que administrou o Rival a partir da década de 1970.

Produzido ao longo de seis anos, o documentário mergulha na intimidade dos primeiros homens que romperam com padrões sexuais ao subir em saltos e passar batom. Entre outros temas, o filme trata da velhice, da relação de Leandra com as atrizes e do amor em tempos de ditadura. Segundo a diretora, um de seus principais objetivos foi fazer um resgate de memória para a nova geração. “A escolha corajosa, pioneira, de se travestir, em 1960, abriu caminho para tanta coisa. Acho muito importante que as novas gerações, e todo mundo, reconheçam isso”, disse Leandra, que é fã declarada de Ru Paul’s drag race, reality show americano protagonizado por drag queens.

Passados mais de 50 anos da estreia das divas no Rival, Leandra reconhece que alguns direitos foram conquistados pela comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Mas faz um alerta:  “Somos muito violentos. O Brasil é o país que mais mata travestis no mundo”, diz. Confira a entrevista.

ÉPOCA – Como foi a experiência de estar, pela primeira vez, por trás das câmeras?
Leandra Leal – Como filme de estreia, foi bastante desafiador e difícil, principalmente a produção, a parte de captação [de recursos]. E, depois, foi supertrabalhosa a montagem, já que poderíamos construir o filme de diversas formas. Corri muito atrás do filme, em todos os sentidos. De estudar e de realizá-lo, propriamente.

ÉPOCA – Quais foram suas principais referências para a concepção do documentário?
Leal – Minha maior referência foi Paris is burning, documentário sobre a cena do voguing em Nova York. Grey gardens também é um documentário que eu amo. Histórias no céu, que fala muito de uma história pessoal, Dzi Croquettes e Buena Vista Social Club, que tem o mesmo dispositivo, do reencontro.

ÉPOCA – O filme é costurado por depoimentos seus bastante confessionais. É, portanto, um filme sobre você?
Leal – É uma história pessoal. O filme é sobre oito artistas que eu admiro e sobre a minha relação com elas. É também uma declaração de amor a meu ofício. Sou muito feliz como atriz. Gosto muito do meu trabalho. Tinha o desejo de dirigir um filme, mas queria algo que me motivasse de vários lados – como artista, criadora e cidadã. O Divinas cumpre esse papel.

ÉPOCA – Desde o início das filmagens, em 2011, até a finalização passaram-se seis anos. Por que tanto tempo?
Leal – Foi a montagem. Passei dois anos e meio montando, o que não é um tempo absurdo para documentário. É muito trabalhoso mesmo. Foi difícil achar um equilíbrio entre as oito personagens e, ao mesmo tempo, montar um mosaico geracional. Contar um grande personagem, com a particularidade de cada um e suas histórias. Além disso, o Divinas tem muitos ambientes: entrevistas, os ensaios e os bastidores, que acabaram ganhando importância na montagem.

"Acho que elas merecem mais [reconhecimento]", disse Leandra Leal, diretora de Divinas Divas, sobre artistas travestis (Foto: Daryan Dornelles)

ÉPOCA – A popularização da cena drag queen, com Ru Paul’s drag race, motivou você a fazer o documentário? E de que forma ela pode ajudá-lo?
Leal – Adoro o Ru Paul’s drag race. Em 2010, fui para Nova York ver uma apresentação dele. Foi muito legal. Mas, quando começamos a filmar o Divinas, em 2011, o programa não era tão conhecido no Brasil. E todo o debate sobre identidade de gênero não estava como hoje. Inclusive, acho que agora seria até mais fácil captar para um projeto como o Divinas. A popularização do assunto ajuda sim o filme. Pode atrair, inclusive, um público que não é da cena.

ÉPOCA – Uma das cenas mais emocionantes do filme mostra Jane di Castro homenageando o marido, com quem está casada há 50 anos, no palco do Teatro Rival, onde o conheceu. A humanização das divas foi seu principal objetivo?
Leal – É um dos objetivos. Queria muito mostrar o ser humano por trás das divas, com toda a complexidade de cada uma. Esse ponto faz com que o filme se comunique com diversos tipos de público. Porque todo mundo tem histórias de amor, por exemplo.

ÉPOCA – Como é sua relação com as artistas do filme?
Leal – Tanto com elas como com outros artistas que passaram pelo Rival tenho uma relação de proximidade. Trazem uma memória afetiva. Elza Soares, Dercy Gonçalves e Cauby Peixoto são alguns exemplos. No caso das Divinas divas, o filme trouxe uma relação diferente, mais intensa. Elas se dedicaram ao longo de quatro anos de gravação. Sou muito grata a elas pela confiança. É muito louco alguém chegar e dizer que vai fazer um filme sobre sua vida.

ÉPOCA – Hoje, todas elas têm mais de 70 anos. Como foi retratar a velhice? 
Leal – Esse é um tabu, que acho até que dificultou a captação para o filme. É um assunto que não falamos muito no Brasil. Temos o ideal da juventude eterna. Mas não é por aí. Se tudo der certo, todos nós ficaremos velhos.

ÉPOCA – Em entrevista recente, Rogéria afirmou à reportagem que ser travesti hoje é mais fácil do que há 30 anos. Você concorda?
Leal – Existem várias conquistas que a comunidade LGBT teve no Brasil. Mas, ao mesmo tempo, há muita contradição. Quando elas começaram, as divas não podiam sair na rua assim [montadas]. Isso foi conquistado. Mas ainda somos um país muito intolerante, preconceituoso e hipócrita. Temos tantos rótulos que não são verdadeiros e que nos impedem de conhecer. Um deles é que somos uma população pacífica. Acho que somos muito violentos. O Brasil é o país que mais mata travestis no mundo. É grande a quantidade de gente que morre de forma violenta.

ÉPOCA – Uma das questões que você aborda no documentário é o fato de elas terem feito ou não a cirurgia de redesignação de sexo. Por que abordar isso?
Leal – As divas têm definições muito próprias sobre elas mesmas.  A Jane di Castro, por exemplo, se identifica como transexual. A Rogéria fala que é gay, homem, mas “tem a mulher”. E acho que elas têm todo o direito de se definir como quiserem. Minha intenção era mostrar essas diferenças. E também elucidar um pouco a trajetória de cada uma. Quando começaram, se transformaram, elas foram cobaias [da medicina]. Queria entender como elas se viam, e essa questão [de serem operadas ou não] ajudava na compreensão. E também existe uma confusão do público, que pergunta: “Elas são operadas? Onde operaram?”. Se fosse outra pessoa perguntando, talvez fosse de outra forma. Comigo, em relação a elas, isso era um assunto natural.
ÉPOCA – Outro tema que o filme toca é a prostituição. Hoje, a figura dos travestis ainda é muito associada à prostituição. Como vê essa questão? 
Leal – Compartilho da opinião da Rogéria, de que cada um faz o quiser diante da vida, do seu corpo, da sua intimidade. Sou meio radical. Mas esse é mais um estereótipo sobre os travestis. A inserção no mercado dessa população é muito difícil para tudo. O nome social favorece muito. Mas desde estudar é um desafio. Imagina, a pessoa numa faculdade e toda a documentação dela é com o nome de registro. Isso é um megainibidor. São coisas que atrapalhavam, e ainda atrapalham. Muitos também são expulsos de casa. É uma realidade difícil.
ÉPOCA – Você acha que as artistas travestis têm no Brasil o reconhecimento que merecem?
Leal – Acho que elas merecem mais. Há um ponto fora da curva que é a Rogéria. Ela transcendeu. Fez uma novela num papel de mulher, de uma avó, numa novela de época [Lado a lado, de 2013]. Mas esse lugar delas, do talento, e a escolha corajosa, pioneira, de se travestir, em 1960, abriram caminho para tanta coisa. Acho muito importante que as novas gerações, e todo mundo, reconheçam isso. A geração delas as conhecem. Mas as novas nem tanto. Isso é muito comum no Brasil, o fato de não conhecer tanto a nossa história. O cinema pode cumprir esse papel.

ÉPOCA – A Marquesa, uma das personagens do filme, morreu aos 71 anos, em maio de 2015. Ela chegou a ver o documentário?
Leal – Não viu, infelizmente. Em 2015 não estava nem perto de finalizar a montagem. Toda a equipe lamentou muito o fato de ela não ter visto.

ÉPOCA – Você pretende seguir a carreira de diretora de cinema? Já existem novos projetos engatilhados?
Leal – Tenho novos projetos sim, mas ainda não posso falar sobre eles. O que posso adiantar é que quero fazer algo na ficção. Mas, antes de tudo, sou atriz. Uma atriz que dirige. Mas não vou virar diretora. Não é algo que pense em fazer como carreira. Gosto de dirigir, mas é algo que vai em paralelo. Não vou pegar um roteiro pronto, por exemplo. Serão processos como o Divinas divas, de elaboração. Na dramaturgia, estreia o filme Love Film Festival, no dia 20 de julho, e, em agosto, Bingo: o rei das manhãs.

 

 

 

Publicação Original: “Ainda somos um país muito intolerante, preconceituoso e hipócrita”, diz Leandra Leal

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